Copa América (America’s Cup)

Foto: ©Carlo Borlenghi

Foto: ©Carlo Borlenghi

36ª America’s Cup

Uma competição cheia de incertezas

Por Roberto Negraes*

Afetada pela pandemia de covid-19, com cancelamentos e indefinições, a próxima America’s Cup será disputada pelo vencedor de quatro equipes, que brigarão pelo direito de desafiar os detentores do mais tradicional e desejado troféu da vela mundial, a bordo de uma nova geração de barcos feitos para “voar”

Foto: ©Carlo Borlenghi

Foto: ©Carlo Borlenghi

O mais tradicional e importante desafio do iatismo mundial é, sem dúvida, a Copa América (America's Cup), conhecida também popularmente entre os velejadores como “Velho Caneco” (Auld Mug). Habitualmente, era disputada por veleiros monocascos, que, entretanto, nos últimos sete anos, foram substituídos por multicascos, uma quebra da tradição mais do que centenária. Contudo, para o próximo desafio, o 36º, teremos uma volta às origens – o retorno dos monocascos. A próxima edição da America’s Cup, em 2021, terá uma nova geração desses veleiros, extremamente sofisticados e usando hidrofólios. As regatas de aquecimento (America’s Cup World Series), em 2020, foram adiadas em razão da pandemia de covid-19, mas serão realizadas até o fim do ano.

A mudança nas regras, ou melhor, o retorno aos monocascos, deve-se à brilhante vitória, em águas das Bermudas, do Emirates Team New Zeland Aotearoa sobre o representante dos EUA, o Oracle Team USA (assista ao vídeo abaixo). Com isso, defensores dos valores tradicionais do evento, os neozelandeses, como vencedores da disputa, puderam decidir pela volta dos monocascos, que protagonizaram as disputas pela copa de 1851 a 2007.

A primeira edição da copa ocorreu no Reino Unido em 22 de agosto de 1851 (há 169 anos, portanto). Criada pelo Royal Yacht Squadron como R.Y.S. £100 Cup, constava de uma regata ao redor da ilha de Wight. Conquistada pela escuna America, do New York Yacht Club (NYYC), foi renomeada America's Cup e entregue aos americanos, sob os termos de doação do, assim chamado, documento Deed of Gift, que tornou a taça disponível para competições internacionais, sem prazo para terminar nem direito a posse definitiva.

A disputa pela prestigiada Copa América ocorre por meio de match races, regatas entre dois veleiros: o “defensor”, representando o iate clube detentor do troféu, e seu oponente, representando o iate clube “desafiante” (podem participar somente clubes qualificados sob os termos do regulamento). O vencedor fica de posse do troféu até a próxima competição.

De início, participavam do evento apenas magnatas com grandes escunas, entre 65 e 90 pés, com 20 a 27 metros de linha d'água. Em 1913, foi estabelecida a regra conhecida como Universal Rule, que determinava linha d'água um pouco menor, entre 76 e 88 pés (23 a 26 metros de linha d'água). Contudo, durante quase vinte anos depois da Segunda Guerra Mundial, não surgiu nenhum desafio para a disputa da Copa América, em razão do esforço de recuperação dos países no pós-guerra, e a solução encontrada foi um novo regulamento, liderado por Henry Sears, em 1956, para reduzir os então veleiros classe J dos anos 30, prevendo barcos menores, com 12 metros de linha d'água (esta classe de veleiros foi utilizada de 1958 até 1987).

Vitorioso em 24 defesas consecutivas, o New York Yacht Club manteve a posse do troféu de 1857 até 1983, quando o desafiante Royal Perth Yacht Club conquistou a taça com o veleiro Austrália II. Até 1970, as disputas sempre aconteceram entre um barco do NYYC e um único desafiante. A partir de 1970, contudo, vários iates clubes começaram a se apresentar para a competição. A solução foi promover uma série seletiva entre os candidatos, para definir o desafiante oficial pelo cobiçado troféu. Em 1983, o fabricante francês de malas Louis Vuitton começou a patrocinar as seletivas, instituindo assim a Copa Louis Vuitton para o desafiante. Este patrocínio, no entanto, está sendo assumido pela grife Prada, que emprestará seu nome ao troféu.

Ao longo da centenária história da Copa América, os únicos barcos não americanos vitoriosos foram, pela ordem cronológica: Australia II (Austrália), Black Magic NZL-32 (Nova Zelândia), Alinghi SUI-64 (Suíça) e Aotearoa Team New Zeland (Nova Zelândia).

A tradição e prestígio da Copa América atrai não apenas os melhores velejadores e projetistas navais do mundo, mas também patrocinadores e empresários de sucesso, com arrecadação de fundos e liberdade de gerenciamento. Competir pela taça é um grande investimento, com equipes gastando, atualmente, mais de 100 milhões de dólares cada — estima-se que o vencedor de 2013, o Oracle Team USA teria gasto cerca de 300 milhões de dólares na competição.

Em 2010, uma disputa legal surgiu sobre qual tipo de barco seria utilizado na Copa América. Ao final, depois de muita discussão, prevaleceram os multicascos, substituindo os monocascos tradicionais, o que significaria, segundo o capitão do Oracle Team USA, Russel Coutts, mudar para uma nova era, deixando a “geração Flintstone” para trás.

Para a disputa de 2013, surgiu a grande novidade: os hidrofólios. Quando foram confirmados os rumores de que o veleiro AC72 Aotearoa, da Nova Zelândia, estava empregando esse recurso, começou uma corrida tecnológica para o controle e desenvolvimento dessas lâminas.

Naquele ano, o representante do Royal New Zeland Yacht Squadron ganhou a Copa Louis Vuitton, derrotando italianos e suecos. No fim, o defensor americano Oracle Team USA, do Golden Gate Yacht Club, venceu o desafiante e manteve o troféu.

Mas para 2017, um novo protocolo e uso de velas menores causaram o abandono dos representantes italianos e do Hamilton Island Yacht Club, da Austrália. Desta vez, a disputa foi em água doce, no Lago Michigan, com a revanche dos neozelandeses sobre os americanos: o Emirates Team New Zeland venceu a copa Louis Vuitton e, depois, o defensor Oracle Team USA por 7x1.

E a consequência da vitória dos conservadores neozelandeses foi o retorno dos barcos “flintstone”, ou seja, monocascos. Mas que monocascos! Com novos conceitos, incluindo os hidrofólios, os chamados AC75 são uma mudança drástica na vela oceânica de um só casco.

Barco ou avião? Uma nova raça de puros-sangues de corrida

Concebidos como monocascos com hidrofólios totalmente incorporados, para regatas, foram projetados para literalmente voar (como se lê na página oficial do site da America s Cup). Olhando para o futuro, uma provável revolução na navegação atingirá inclusive os veleiros de cruzeiro. As equipes Emirate Team New Zeland e Luna Rossa (Itália) procuraram, na construção de seus barcos, unir extrema velocidade com segurança (acidentes ocorreram com os multicascos, resultando em morte).

Assista ao vídeo de apresentação do AC75

(Note que, aos 2min02, quem fala é o projetista brasileiro Horacio Carabelli, da equipe italiana Luna Rossa Prada Pirelli)

A posse da America's Cup está com os neozelandeses do Royal New Zeland Yacht Squadron. A defesa ocorrerá em 2021. Neste ano de 2020, antes da pandemia, seria realizada uma série de regatas de treinamento, com a primeira etapa inicialmente prevista para ser realizada em abril, na Sardenha (Itália), onde os AC75 fariam sua estreia e as equipes poderiam compará-los e eventualmente corrigir os projetos. Com a covid-19, esta etapa foi adiada para dezembro, em Auckland, na Nova Zelândia, mas o governo daquele país está se movimentando por um novo adiamento, para 2021. De qualquer modo, já houve muitos transtornos para a maioria das equipes.

Os cronogramas de construção dos AC75 foram estabelecidos antes do inesperado surgimento da covid-19. Isso tornou a próxima edição uma incógnita para a maioria das equipes, que não puderam testar seus barcos contra os oponentes e eventualmente reformular partes fracas de seus projetos. Com isso, os times se voltaram para o desenvolvimento dos projetos na prancha. Projetistas e navegadores dos AC75 que irão competir não têm ideia do que os espera no confronto ao final deste ano. E, depois, não haverá tempo para grandes adaptações pelo vencedor para o confronto final contra o defensor da copa.

A cobiçada Auld Mug (“Velho Caneco”, apelido carinhoso da Copa América). Foto: Richard Hodder / Emirates Team New Zealand

A cobiçada Auld Mug (“Velho Caneco”, apelido carinhoso da Copa América). Foto: Richard Hodder / Emirates Team New Zealand

Interessante acrescentar que o regulamento da America’s Cup, o Deed of Gift, criado no século XIX exige que, para ter direito a participar da disputa, um veleiro precisa ser construído no seu país de origem. Contudo, desde o renascimento do evento em 1956, o regulamento ficou mais flexível. O protocolo para a atual Copa América exige somente que o casco seja construído no país de origem, e usa a mesma definição de casco da regra da classe AC75, como "o corpo principal do iate, incluindo o fundo, os lados, a popa, o convés, o cockpit e as estruturas internas.

A cada America’s Cup, é elaborado um novo protocolo para as regras de construção e participação na disputa. Outra regra relevante é a montagem do barco: atualmente, é permitido ter as peças construídas no país de origem e depois fazer a montagem em outro local. Isso explica as dificuldades do time Stars & Stripes, do Los Angeles Yacht Club. Com a pandemia da Covid-19, o tempo para finalizar o barco da equipe ficou curto. A solução foi solicitar à organização uma autorização para participar com outro veleiro, de forma a poder competir na Copa Prada com um barco alugado ou comprado, possivelmente, o Te Aihe, primeiro AC75 dos neozelandeses (normalmente, as equipes constroem dois barcos para a campanha da America’s Cup), e, no caso de vitória na fase classificatória, disputar a final com barco próprio.

Existem muitas implicações nessa tentativa da equipe Star & Stripes, a começar do conhecimento antecipado por outro competidor do desempenho do oponente. Vamos ver se teremos mesmo uma quarta equipe participante, dependendo dos acordos a serem envolvidos para solucionar essa questão.

Como cada equipe poderia comparar o seu barco com os demais? Deixando de lado o caso Star & Stripes, não há meio senão aguardar as seletivas para definir o desafiante, pouco antes da realização da regata final. Assim, a covid-19 tornou totalmente imprevisível a disputa desta Americaʹs Cup. Quem estará na frente na Copa Prada e terá direito de competir contra o atual detentor da taça?

As equipes participantes da 36ª America’s Cup

Defensor: Emirates Team New Zeland

Desafiantes: Luna Rossa - Prada Pirelli Team (Itália); American Magic - New York Yacht Club (EUA); Ineos Team UK (Inglaterra); Stars and Stripes - Team USA – Los Angeles Yacht Club (EUA)

A programação oficial, até o momento, para os eventos da America’s Cup em Auckland, Nova Zelândia

• 17 a 20 dezembro de 2020: America’s Cup World Series

• 15 de janeiro a 22 de fevereiro de 2021: Prada Cup

• 6 a 5 de março de 2021: America’s Cup

Prada Cup: antes de pensar em pôr as mãos no “Velho Caneco”, é preciso conquistar este outro aqui

Prada Cup: antes de pensar em pôr as mãos no “Velho Caneco”, é preciso conquistar este outro aqui

Negraes.jpeg

*Roberto Negraes é jornalista especializado em náutica e navegação, um dos pioneiros do setor. Em sua primeira participação numa regata virtual, conseguiu um 8º lugar numa das etapas da Volvo Ocean Race de 2008-09, além de 22º e 27º em outras etapas. Depois disso, passou a praticar e tornou-se o melhor brasileiro e melhor participante do continente americano durante anos, vencendo etapas de regatas internacionais como a Velux Five Oceans em 2010, vencendo na categoria SO (sem equipamentos extras) uma Solitaire du Figaro, conseguindo o 2º lugar na classificação geral da Cap-Istambul de 2010 (num final polêmico, com os próprios franceses lhe escrevendo que um bug do game havia lhe tirado a vitória), e terminando entre os Top 10 em 16 grandes eventos internacionais. Na Volvo Ocean Race de 2011-12, após vencer a regata experimental oferecida pela organização, esteve em 2º lugar na classificação geral até a sexta etapa, infelizmente não dando sorte nas duas últimas pernas e finalizando em 5º lugar entre 330 mil participantes de 184 países. Depois disso, parou de competir desde 2012, mas retornou agora às regatas virtuais, participando inicialmente de regatas como testes, para adaptar-se (a tecnologia desenvolveu-se muito nos últimos anos).