Troféu Júlio Verne - Final

A grande vitória!

tentativa de recorde Troféu Júlio Verne na versão virtual

Por Roberto Negraes*

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As emoções reais de um desafio da vela virtual, segundo nosso especialista

Há 46 dias resolvi participar do Troféu Júlio Verne, de volta ao mundo sem escalas, pela Virtual Regatta. Equipei meu barco sem dois dos principais equipamentos para um bom desempenho: o Curupira partiu sem os hidrofólios (que chegam a dar 1,5 nó a mais de velocidade, conforme a condição) e sem a vela Code 0, possivelmente a mais útil. De qualquer modo, esperava conseguir terminar entre os mil ou dois mil primeiros, mesmo com inferioridade em desempenho. O total de inscritos e participantes chegou a mais de 68 mil veleiros virtuais (Como se sabe, no desafio real oficial o único barco desafiante, o Spindrift 2, sofreu uma avaria no leme e abandonou).

O prazo para a tentativa foi do início de novembro de 2019 ao fim de março. Esperei dias e dias pelo momento ideal, analisando as previsões meteorológicas. Finalmente, encontrei uma data, em 4 de fevereiro de 2020, e o Curupira largou a partir da linha demarcada entre França e Inglaterra. Ia bem, mas quando o barco chegou perto da linha do equador (onde há um primeiro ponto de controle da classificação), as previsões se mostraram falhas. Fiquei 36 horas numa calmaria quase total, entre 2 e 4 nós de ventos, no máximo. Quando finalmente superei isso e cruzei pela linha do equador, a Virtual Regatta apontou meu barco perto da posição 4.400. Desanimei um pouco, mas resolvi continuar, pois a descida do Atlântico Sul estava promissora. E realmente foi, com o Curupira chegando a 39,5 nós em ventos muito fortes em alguns pontos.

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Assim, o segundo ponto de controle, na África do Sul, acusou meu barco na posição 2.200, aproximadamente. Recuperar 2 mil posições não é fácil! E mais: entrando no Índico, fui posicionando o barco muito bem, assim navegando por toda a extensão desse oceano até passar pela linha de controle da Austrália no 636º lugar do ranking! E chegamos ao Pacífico. Apesar de pequenos trechos navegando entre 20 e 25 nós, consegui chegar numa zona de baixa pressão e novamente o Curupira passou a navegar entre 32 e até 39,9 nós, isso sem os hidrofólios e a Code 0! Passei desse modo pela longitude da Nova Zelândia, e estava a apenas três dias do Cabo Horn (mil milhas), sempre com ventos de mais de 30 nós e favoráveis!

Nessas navegações de tentativas de recorde, a Virtual Regatta coloca logo na largada, ao lado do veleiro desafiante, o recordista atual (como barco fantasma) para mostrar a diferença durante a navegação. Quando fiquei preso naquela calmaria no equador, estava mais de 900 milhas marítimas atrás do recordista. Contudo, agora, próximo de chegar ao Horn, o "barco fantasma" do líder já estava 1.323 milhas para trás e meu barco ampliando a vantagem! Velejava agora entre 35 e 39,5 nós e, em dado momento, acusou novamente 39,9 nós! A previsão, de acordo com todas as simulações feitas com dois roteadores, era que o Curupira passaria pelo Cabo Horn em 1º lugar! Nesse momento eu ria sozinho. Com um barco precariamente equipado, bem inferior teoricamente em desempenho, percebi que poderia chegar a estabelecer o melhor tempo do troféu Júlio Verne no modo virtual desta temporada.

Depois do Horn, subindo o Atlântico, a situação atmosférica em que meu barco galopava continuava ainda mais forte até quase o Uruguai (era previsto velejar ainda mais forte, entre 38 e 39,9 nós durante dias), e depois teríamos ventos bons pela costa brasileira, até cruzar a linha do equador novamente, com dois dias de vantagem para os melhores tempos até então. Ou seja, iria continuar em primeiro. Não havia como conseguir previsões meteorológicas para o trecho final, o Atlântico Norte (geralmente sempre com fortes ventos no inverno).

Momento em que passei o barco fantasma do líder (JD1), perto do Cabo das Agulhas, África do Sul. Logo o barco fantasma estaria 1.323 milhas marítimas (mais de 2.000 km) atrás do Curupira, que se distanciava cada vez mais, com previsão de ventos de 3…

Momento em que passei o barco fantasma do líder (JD1), perto do Cabo das Agulhas, África do Sul. Logo o barco fantasma estaria 1.323 milhas marítimas (mais de 2.000 km) atrás do Curupira, que se distanciava cada vez mais, com previsão de ventos de 30 a 40 nós por mais 5 ou 6 dias

É claro que fiquei entusiasmado. Poderia ser a melhor regata que já competi, e com um barco bem inferior aos demais, faltando equipamentos cruciais! Eu tinha esperança de chegar ao menos entre os vinte primeiros, o que seria uma vitória. Ainda faltava o trecho do equador à linha de chegada, no norte da França; não tinha previsões para lá, então, não poderia garantir nada além de terminar excepcionalmente bem.

Então, Netuno, do alto de sua suprema sabedoria e espírito de sacana, interveio. De repente, faltou energia elétrica aqui em casa. Nesse momento, o Curupira estava programado para as próximas 14 horas de regata. Aguardei ansioso, angustiado, pois a volta da energia estava demorando muito, no limite do tempo de programação. Ao meio dia, já além da programação, finalmente as luzes de casa se acenderam! Voltara a energia. Corri ao computador para retomar a rota e continuar uma das melhores navegações táticas que já fiz! Apertei o botão para ligar o PC.

Nada aconteceu. De novo, de novo, liga, desliga, tenta, e nada. Passei a tarde tentando, desmontei tudo, montei de novo (entendo um pouco de informática, já dei até assistência técnica), e não adiantou. Não ligava. Xinguei Netuno, Afrodite e todos os vetustos deuses do mar. Só podia ser sacanagem. Eu olhava para o desktop e o monitor, e podia intuir as divindades às gargalhadas. Resumindo, foram oito dias com o computador desligado, e o Curupira velejando a esmo, sem qualquer controle, sem mudança de velas, absolutamente à deriva. Esse tempo todo tentei fazer funcionar várias vezes o PC, sem sucesso.

Tentei chorar de raiva, mas a frustração era tanta que nem isso consegui. Em Cunha (SP), onde moro, não existe ninguém que entenda de computador, apesar de haver até uma loja de "assistência técnica". Quando vi o que o funcionário fazia na máquina, disse para parar e fui embora. Com certeza, não entendia nada mais que o básico.

Viajei finalmente para São Paulo, oito dias depois do desastre, imaginando encontrar, quando resolvesse o problema, meu barco encalhado na Antártica, imitando o Paratii do Amyr Klink, ou visitando os lindos atóis de coral da Polinésia...

Meu filho fez um ano e meio de curso de manutenção de computadores no Senai e dois anos de ciências da computação na faculdade (depois decidiu mudar para Direito). Sabe muito de computador. Levei para ele dar uma olhada. Acho que fiz mil tentativas de ligar durante os oito dias, quase chorando por saber meu Curupira abandonado. Sinceramente, a frustração era grande. Foi como se você tivesse um cachorrinho de estimação e este sumisse na rua!

Então, meu filho pegou uma caixa de ferramentas de teste de computadores que guarda do tempo de seus cursos e colocou ao lado do meu computador. Conectou no monitor de seu desktop e apertou o botão de iniciar, para pesquisar o problema. Evidentemente, meu computador ligou imediatamente, normal, como há anos fazia, menos naqueles últimos oito dias cruciais. Fiquei parado, olhando para a tela, para o desktop, tudo maravilhosamente funcionando, como se absolutamente nada tivesse acontecido. Seus circuitos eletrônicos deviam estar rolando no chão de tanto rir...

Encontrei o Curupira, por capricho dos ventos, pouco além do Cabo Horn, talvez umas cem milhas, navegando em direção à África, devagar e com velas erradas. Apesar do mistério de como o barco, sozinho, conseguira cruzar o Horn mesmo abandonado e a mil milhas de distância, pensei em abandonar a regata. Só não o fiz porque teria de pagar uma multa e perderia todo o investimento realizado nos poucos recursos comprados. Além disso, o Curupira passara o Horn aproximadamente em 630º lugar, uma façanha inédita para um veleiro abandonado por mais de uma semana! E tem quem duvida que barcos não tenham alma! Contudo, estava cinco dias atrasado em relação ao previsto, e havia perdido aquele vento fantástico que teria até a altura do Uruguai. Em vez disso, encontrei-o numa calmaria de chorar, boa para pescarias.

Enfim, inconformado, aos poucos livrei-me da calmaria. Consegui passar pelo equador em, aproximadamente, 1.500º lugar no ranking. E então, mais calmaria e vento fraco, de proa, até a linha de chegada, contrariando as características do Atlântico Norte. O Curupira completou sua volta ao mundo em 46 dias, 1 hora e 24 minutos, mesmo totalmente abandonado durante oito dias e noites. E terminou em 1.984º (pensei que chegaria em 5 mil ou mais quando resolvi continuar), entre os mais de 68 mil veleiros virtuais participantes. Por tudo que aconteceu, foi um verdadeiro milagre. Enfim, nunca desisti de nenhuma regata, e não estava falando sério para mim mesmo que desistiria desta, por maior que fosse a frustração.

Afinal, pensando bem, o resultado, lembrando do ocorrido, foi uma grande vitória. Talvez a maior!

A seta à esquerda mostra o ponto exato em que o barco ficou abandonado. Em vez de ir direto, se eu estivesse no comando, ele fez uma rota maluca, subindo, depois descendo, e pelo capricho dos ventos ultrapassou o Horn! A segunda flecha mostra onde o…

A seta à esquerda mostra o ponto exato em que o barco ficou abandonado. Em vez de ir direto, se eu estivesse no comando, ele fez uma rota maluca, subindo, depois descendo, e pelo capricho dos ventos ultrapassou o Horn! A segunda flecha mostra onde o encontrei 8 dias depois, quando consegui acessar o game. Só que era para ter feito o trajeto em três dias e passado em primeiro pelo Horn. Além disso, se tivesse continuado como estava, teria condições atmosféricas perfeitas para subir rapidamente o Atlântico e novamente passar também em primeiro pelo equador. Contudo, quando o peguei, estava, ao contrário, numa calmaria das bravas, e depois a subida do Atlântico foi sempre em calmarias, com centros de alta pressão bloqueando o caminho. E quando tinha vento, era fraco e de proa (totalmente desfavorável). Imagine conseguir chegar em 1.984º no ranking, contra 68 mil participantes com todos esses problemas! Foi a melhor regata que já realizei taticamente.

Resultados da tentativa de recorde virtual do Troféu Júlio Verne de 2019-2020

1. Phil Destroy (Bélgica) em 39 dias 18 horas e 29 minutos

2. NONO512 (França) em mais 3 horas e 21 minutos

3. GabifF50 (Bélgica) em 4 horas e 8 minutos

4. YANN.fr (França) em 5 horas e 33 minutos

5. Colin767 (França) em mais 5 horas e 57 minutos

6. legrew (França), em mais 9 horas e 23 minutos

7. PSG/3001/VDC (Bélgica), em mais 14 horas e 44 minutos

8. Fouras_17 (França), em mais 17 horas e 5 minutos

9. MIRAGE 2 TIMOVAN (França), em mais 19 horas e 6 minutos

10. Manduz (França), em mais 21 horas e 34 minutos

O Curupira terminou na posição 1.984 no ranking, completando o percurso em 46 dias, 1 hora e 24 minutos, mesmo com oito dias "à deriva" (em razão de problemas de conexão e de defeito no computador de Roberto Negraes) e perdendo as condições meteorológicas perfeitas. Participaram 68.685 barcos virtuais, alguns realizando duas tentativas.

Resultado da tentativa de recorde oficial do Troféu Júlio Verne de 2019-2020

O desafiante oficial, o maxitrimarã Spindrift 2, comandado por Yann Guichard, foi forçado a abandonar sua tentativa de estabelecer novo recorde de volta ao mundo para o Troféu Júlio Verne, em razão de danos no leme ocorridos em condições extremas de navegação, o que comprometeu a segurança do veleiro.

O nosso velejador virtual

Foto: Arquivo pessoal

Foto: Arquivo pessoal

*Roberto Negraes é jornalista especializado em náutica e navegação, um dos pioneiros do setor. Em sua primeira participação numa regata virtual, conseguiu um 8º lugar numa das etapas da Volvo Ocean Race de 2008-09, além de 22º e 27º em outras etapas. Depois disso, passou a praticar e tornou-se o melhor brasileiro e melhor participante do continente americano durante anos, vencendo etapas de regatas internacionais como a Velux Five Oceans em 2010, vencendo na categoria SO (sem equipamentos extras) uma Solitaire du Figaro, conseguindo o 2º lugar na classificação geral da Cap-Istambul de 2010 (num final polêmico, com os próprios franceses lhe escrevendo que um bug do game havia lhe tirado a vitória), e terminando entre os Top 10 em 16 grandes eventos internacionais. Na Volvo Ocean Race de 2011-12, após vencer a regata experimental oferecida pela organização, esteve em 2º lugar na classificação geral até a sexta etapa, infelizmente não dando sorte nas duas últimas pernas e finalizando em 5º lugar entre 330 mil participantes de 184 países. Depois disso, parou de competir desde 2012, mas retornou agora às regatas virtuais, participando inicialmente de regatas como testes, para adaptar-se (a tecnologia desenvolveu-se muito nos últimos anos).