Christina Amaral
A felicidade
está no mar
Por Roberto Negraes - Fotos: arquivo pessoal
Entrevistamos uma das mais experientes (e apaixonadas) navegadoras brasileiras
Christina Amaral, aos 59 anos de idade, a maior parte deles embarcada, é uma das mais experientes e conhecidas navegadoras brasileiras. Pode ser definida como uma realizadora de sonhos. Objetiva, decidida, sua iniciação no mar aconteceu com um simples passeio de jangada, no Nordeste. O jangadeiro deixou-lhe o leme com um conselho servindo para toda sua vida: “Sinta o que a vela está pedindo”.
Logo surgiu o sonho de viver com o mar. Determinada, foi em sua busca. Começou timidamente, numa lagoa de Minas Gerais, de carona com pequenos veleiros. Não demorou muito e mudava-se para Vitória (ES), onde aos poucos foi se integrando no ambiente náutico. Um convite, e velejou como tripulante para o Nordeste.
Depois de acumular muitas milhas como tripulante amadora, não demorou para profissionalizar-se como tripulante e professora de vela, além de fazer delivery de barcos. Foi para a Europa trabalhar por muitos anos num veleiro de 80 pés. Da Itália, levava barcos ao Caribe. Anos e anos de experiência foram se acumulando com regatas, várias travessias do Atlântico. Assim, passou de tripulante a comandante de veleiros em viagens. Segundo Christina, em seu currículo conta algo entre 85 mil e 90 mil milhas marítimas navegadas —algo entre 157 mil e 166 mil quilômetros.
Finalmente, o desafio maior: navegar até o Cabo Horn. Apaixonou-se pela Patagônia e sua natureza selvagem, esteve muito tempo por lá, é apaixonada pela região. Então, nada como passar a palavra a Christina, para que nos conte sua história com o mar.
Como foi sua primeira velejada, como se sentiu no momento e depois?
Minha primeira velejada foi aos 16 ou 17 anos, quando viajei com a minha família para o Nordeste. Em Maceió, velejei de jangada, com água nos pés, jogando latas de água na vela para tampar os poros do tecido, e me lembro de ter ficado com a escota na mão. O jangadeiro orientava: “Sente o que a vela tá te pedindo”. Não tenho ideia de quanto tempo durou, mas pra mim foi o máximo.
Depois, no início dos anos 1990, eu tinha um restaurante e uma loja de comida congelada. Recordo de uma cliente pedindo pra deixar um cardápio na loja do marido. Quando cheguei lá, tinha dois velhos lobos do mar lixando o fundo de um veleiro de 24 pés. Isso foi em Belo Horizonte. Então, imagina minha surpresa ao ver junto de montanhas um veleiro no seco! Ao passar por eles, eu disse: “Coloca essa baleia no mar, porque fora d'água ela não vai sobreviver”. Eles riram e assim começamos a conversar, e eles ficaram contando casos de mar, de travessias; pra resumir, fiquei lá três horas, com lixa na mão, conversando e lixando. Acabaram convidando para ir a um clube náutico no dia seguinte.
No clube, na Lagoa dos Ingleses, em Belo Horizonte, conheci muitos velejadores. Um deles me convidou para velejar, acho que era num Alpha 22 pés. Depois, subi em outro, um Brasília 23. Andei em dois ou três barcos durante aquele dia, me deram muitas dicas de como velejar, e num momento em que estava no leme de um dos veleiros, disseram a mesma coisa que o velhinho na jangada: “Sinta o que o leme está pedindo”.
Eu saí encantada, tanto com a velejada como com o pessoal do clube, o restaurante (a gente pegava comida, no fim do dia colocava o pagamento numa caixa e retirava o troco se precisasse), tudo com muita naturalidade. De lá, fui direto a uma livraria e comprei tudo que havia sobre náutica. Virei a noite lendo livros! Anotei as manobras num papelzinho e no dia seguinte voltei ao clube. Lá, conheci um senhor que estava vendendo um Laser, e me convidou a experimentar o barco. Deu algumas instruções, subi no Laser e fui embora!
Com o vento a favor, fui longe demais. E para voltar? Levei duas horas e meia no contravento, pegando minhas anotações feitas na véspera, e deu certo. Amei controlar o barco com a força do vento, da física, fiquei encantada com esse passeio.
Acabei comprando o Laser desse cara e fiquei sócia do clube, tudo no mesmo dia. E passei a frequentar todo dia; ou, quando não era possível por conta do trabalho, ia mesmo à noite velejar. O vigia abria a porta do clube a qualquer hora, gostei muito dessa fase. Comecei a fazer regatas, era muito prazer que dava.
Velejando em lagoa, acabei apaixonada pela vela. A biblioteca náutica do clube era muito legal, e eu li tudo o que tinha lá. Quando li Bernard Moitessier, eu passei a sonhar ser velejadora. Com Slocum, aprendi que não precisava de muita coisa. Ganhei um sonho, e comecei a me preparar para isso, fazendo cursos, tirando todas as habilitações até chegar na de capitão amador, mesmo velejando apenas numa lagoa. Eu tive aulas para tirar habilitação, mas não tive aulas de vela, numa lagoa era fácil aprender pela leitura.
Como aconteceu sua primeira velejada no mar?
Minha estreia no mar foi com um amigo. Ele queria levar o barco dele de Vitória para Angra dos Reis, e me convidou para ir, com mais uma pessoa”. Eu me lembro bem, na viagem, eles me deram o turno durante uma noite escura. Estava um vento maravilhoso, de alheta. Tirei do piloto automático e assumi o leme, olhando para as estrelas, e assistindo a uma chuva de meteoritos. Fui fazendo pedidos para as estrelas cadentes: “Quero morar num barco, quero morar num barco!”.
Naquele momento, decidi. Era ali que eu queria estar. Velejando, no meio da noite, entre o céu e o mar, longe de terra, aquilo me bastava para ser feliz. Foi o maior insight que tive na vida, era isso o que eu queria.
Como conseguiu vaga de tripulante em veleiros?
Eu mudei para o litoral em 1999, pensando em construir um barco, pois a construção teria de ser perto do mar. Escolhi Vitória, pois minha família tinha um apartamento de férias nessa cidade. Vendi tudo, desmontei o restaurante, fechei a empresa, mas o dinheiro foi embora pagando o acerto dos funcionários. Quando pesquisei sobre como fazer meu próprio veleiro, descobri que era muito demorado. Em Vitória, naquele tempo, não precisava ser sócio para entrar no iate clube, então ia sempre ver os veleiros. Um dia encontrei um barco que ia participar da regata Eldorado–Brasilis, e precisavam de tripulante. Me ofereci, disse que sabia velejar e participei. Depois disso, competi em mais regatas, sempre quando precisavam de tripulante para ajudar.
Um dia chegou um barco. Era um senhor de Olinda, chamado Batista, num Arpège. Por um acaso, eu estava no píer. Ajudei na amarração, a retirar o lixo de bordo; e em seguida, a arrumar o barco. Com isso, ele me deu a chave do veleiro para que eu tomasse conta, e ainda pediu para que eu traçasse uma rota para ele retornar ao Nordeste.
Quase um mês depois, voltou, convidou-me para ir junto e fui. Foi perto de 1.200 milhas com o Arpège, viagem muito legal. Depois disso, comecei a fazer delivery de barco. E cada lugar que eu chegava, sempre tinha alguém precisando de tripulante. Fiz, inclusive, a regata dos 500 anos, em abril de 2000.
Qual a solução encontrada para ter seu próprio veleiro?
Depois da regata, cheguei à conclusão que chegava de ser tripulante, estava de tripulante ‘escrava’, trabalhava e não ganhava nada, ia de graça. Assim, nunca conseguiria ter meu próprio veleiro. Percebendo que muita gente me convidava para ser tripulante, entendi que poderia ganhar dinheiro com isso, e passei a cobrar para embarcar. E me contratavam, isso foi muito legal, confirma que estava fazendo a coisa certa.
O serviço de delivery também ajudava. E em cada viagem, conhecia muita gente. Com isso, conheci o Luiz Poesia, que estava reformando um barco que tinha encalhado em Maragoji (Alagoas). Ele entrou em contato comigo, convidando para fazer negócio. Fui conhecer, viajando de moto (uma “vespa”). Quando cheguei lá, vendo como o veleiro estava muito danificado, entendi que iria perder muito tempo com a reforma e desisti. Decidi então comprar um barco usado, mas em condições para navegar. Para isso, segui de Salvador até Natal procurando um veleiro. Em todo lugar onde avistava um “palitinho” flutuando eu parava e ia conhecer.
Depois, desci a costa brasileira toda nessa busca, viajei uns 10.000 quilômetros ou mais! E essa viagem foi incrível, pois conheci o verdadeiro Brasil, gente a mais diferente possível. Dormindo numa barraca pequenina, a gente vira um personagem, e os outros também são personagens. No meio do caminho, ajudei pessoas a reformar barcos, fazer manutenção, pois precisava de dinheiro e me virava assim. Cheguei a montar duas escolas de vela, uma com aquele amigo do Arpège, outra em Porto Seguro com um casal que conheci e inicialmente me pediu ajuda. Eu ia, então, trabalhando e viajando, na busca de um veleiro, até que encontrei meu barco em Angra dos Reis — o Aquarela. Reformei, e é o veleiro onde eu moro até hoje.
Como foi sua primeira tempestade, como se sentiu?
Como o Aquarela não tinha motor e eu não me achava competente o suficiente para sair com ele para o mar aberto de uma vez, sempre que entrava uma frente fria eu saía para velejar dentro da Baía da Ilha Grande, perto da Joatinga e outros lugares. Isso porque eu estaria sempre em lugar de fácil acesso; se acontecesse algum problema, poderia pedir socorro pelo VHF.
As tempestades não me pegavam de surpresa, estava sempre atenta. Não vou dizer que sentia medo, pois não era essa a palavra; ficava mais preocupada em como o barco iria se comportar, se tinha condições de suportar. Eu não pensava em mim mesma, pensava na segurança do veleiro, como mantê-lo íntegro. E nesses testes com mau tempo em Angra, se alguma coisa quebrasse, eu reforçava. Depois de cinco meses de testes e reformas, dia 5 de junho viajei da Ilha Grande para o Nordeste.
Quando decidi partir, lembro que a previsão de tempo que a gente conseguia era pela carta sinótica da Marinha. Além disso, assistia à previsão do tempo de um canal de televisão (em bares, pois eu não tinha TV), que mostrava em mapinhas as frentes frias. Era assim que a gente planejava as saídas para navegar. Por exemplo, sabendo que dali a quatro dias, chegaria algum tempo desfavorável, me preparava com velas de tempestade, esse tipo de coisas. E então tive uma lição muito importante.
Eu tinha planejado uma saída para mar aberto, tinha visto todas as condições ideais, no “achismo”, mas antes de partir telefonei para um amigo, capitão da Marinha Mercante, pedindo sua opinião sobre as condições do tempo. Ele então me deu uma resposta que virou lição de vida: “ Christina, estou na minha casa, não olhei nem na janela para saber que tempo está fazendo, eu não tenho como tomar uma decisão ou saber o que está acontecendo lá fora, onde está seu barco. Só você sabe se dá para sair ou não, conhece seu veleiro, sabe se tem experiência ou não para conduzir o barco e que vento está aí do lado de fora da barra. É você que tem de tomar uma decisão de sair ou não.
Com isso, cheguei à conclusão que cada decisão a bordo deve ser responsabilidade do comandante, porque você não pode pôr a culpa em mais ninguém se tudo der errado. Afinal, é você quem está ali sozinho tomando as decisões. Então, nessa hora, não vale a opinião de outras pessoas. No máximo, vale um conselho, uma ajuda técnica, faz isso, etc. e tal, mas a decisão final é pessoal e intransferível. Toda responsabilidade sobre essa decisão também é sua. E isso te dá uma baita liberdade, sabe? É aí que nasce sua responsabilidade de decisão, de escolha, de tudo. Foi o segundo insigth que tive na vela com intervalo de um ano, de que eu estava no lugar certo, fazendo a coisa certa, e era o que eu queria.
Sobre tempestades, ondas, tudo isso faz parte do imaginário de pessoas que vivem na terra. Eu não conheço nenhum navegador daqueles de volta ao mundo a comentar sobre isso, porque não faz sentido. O que eles falam é o que deve ser feito, as coisas em que erraram e deveriam fazer diferente. Eu encontrava muitos desses velejadores nos portos, principalmente estrangeiros. Eles contavam o que tinham feito de errado ou de certo, quais foram os resultados, era esse aspecto que para mim era importante. Eu sempre dizia isso para minhas alunas nos cursos que dava, “o medo não faz sentido”. Tudo tem que ser vivido de acordo com o que você tem, não só de material em sua mão, como também com seu conhecimento, técnica, tem que estar preparada para tudo, e precisa ter a humildade de saber que nunca poderá estar preparada cem por cento. E isso é legal, porque você vai lidar com todas as adversidades com aquilo a que referi anteriormente, o autoconhecimento, a ter confiança em você mesmo, a respeitar sua intuição. Ouvir a intuição para mim é muito importante. Outra coisa que foi fantástica, aquela história de que os grandes navegadores devem às tempestades aquilo que eles são, é verdade, pois se aprende muito —aliás, tanto numa tempestade quanto numa calmaria.
Não que eu queira tempestades, mas você tem que saber lidar com isso. E vou te falar uma coisa, em todas as tempestades que peguei, e não foram poucas, não dá tempo de sentir medo, na verdade é uma adrenalina, você tem que manter o barco íntegro, saber o que tem de fazer. Precisa ficar no leme para surfar ondas que sejam muito grandes para não atravessar, tem que lidar com várias coisas a bordo, ainda mais quando tem tripulantes que dependem de você. É tanta responsabilidade que você não tem tempo para ficar dando chilique, ficar com medo. Tem de fazer o que precisa ser feito, manter tudo da melhor forma possível. Lidar com o medo de forma racional foi o melhor aprendizado na vela; a gente decide coisas que não são realmente muito planejadas, as decisões chegam rápido, tem de rizar, não pode deixar o barco atravessar, e isso e aquilo, põe cinto de segurança, etc.. Assim você aprende com os erros dos outros e tenta fazer o melhor possível. Acho que deu certo, estou aqui depois de 23 anos de mar.
Como foi trabalhar no Mediterrâneo e no Caribe?
Fiquei navegando pelo Nordeste sozinha dois anos. Eu trabalhava, ganhava dinheiro e navegava, era assim que eu fazia. Era até engraçado, imagina, uma mulher sozinha, num veleiro de 22 pés, sem motor, todo mundo queria me dar reboque, diziam que eu não ia chegar nos lugares, e aí eu chegava. Não tinha de provar nada para ninguém. Eu só estava fazendo o que eu queria mesmo. Então, resolvi voltar para o Sudeste, pois pensava que tinha mais trabalho no Sudeste do que no Nordeste. Cruzando com muita gente pelo caminho, um dia um amigo entrou em contato comigo, dizendo que tinha um veleiro de 80 pés na Itália que precisa de uma tripulante mulher, “e você preenche os requisitos, quer ir?” Respondi “eu quero, mas não sei uma palavra de italiano”.
Aí foi a segunda vez que comecei a aprender alguma coisa na vida, na marra, né? — Christina ri várias vezes, lembrando dos problemas que precisou vencer. Comprei um livro sobre aprender italiano, chamado “Italiano em um átimo”, e logo comecei a aprender os termos náuticos em italiano. E viajei para a Itália. Foi muito engraçado, porque fiquei uns quinze dias de boca fechada, e quem me conhece sabe que eu falo demais, adoro falar! Imagine eu quinze dias calada! Até que um dia resolvi, disse para o pessoal “vou falar palavras erradas, e vocês vão me corrigindo”. E foi legal, o barco pertencia a uma família e, nas férias, as crianças tinham lição de casa, e eu aproveitava para ler os livros escolares, de alfabetização em italiano, gramática, e sempre pedia para me corrigirem quando eu falasse errado; senão, não aprenderia.
Fiquei assim muitos anos, trabalhando, naveguei todo o Mediterrâneo, Grécia, Croácia, Tirreno, Baleares, eu conheci toda essa área durante as temporadas de verão. Aí a gente conhece um, conhece outro, pessoas que precisam levar barcos ao Caribe. Acontece que a temporada no Caribe é depois da temporada no Mediterrâneo. Então eu ia até o Caribe levando barcos da Europa, voltava para o Brasil, trabalhava o finalzinho do verão e início do outono aqui, depois voltava para a Europa. Desse modo, eram três temporadas de trabalho por ano, cada uma em sua região.
É pena eu ter perdido as fotos daquela época, quando ocorreu um problema no meu computador, dois HD deixaram de funcionar. Por isso eu não tenho mais a maioria das fotos desse período. Só as que ficaram num blog que fiz. Foi uma época muito boa, de muito aprendizado, pois na Europa, naquele veleiro de 80 pés, a gente fazia a temporada de regata e depois a de verão.
As regatas são o maior aprendizado que se pode ter, não digo só de ajuste de velas, mas em consertar uma coisa que quebra na hora, a gente precisa consertar com segurança e sem perder a performance do barco. Assim também era no Caribe, um lugar que não gosto por ser excessivamente turístico. Ali, o aprendizado era outro, pois cada ilha é um país, e tem de se cumprir todos os trâmites legais, aí você começa a descobrir outras funções do comandante. Tem que estudar antecipadamente cada país para onde você vai, quais são as leis, regras, o que precisa providenciar com antecedência. E isso era apressado, às vezes numa semana a gente ia em duas ilhas, havia muita burocracia, mais um motivo para eu não gostar do Caribe.
Você contou que organizava cursos, dava aulas de navegação. Como fazia?
Eram clínicas de navegação a céu aberto, geralmente só de mulheres. Quando tenho algum barco para delivery, aproveito e coloco todas a bordo e dou uma navegada ensinando. Geralmente é assim que funciona. Eu dou aulas também para casais, geralmente pessoas que compram veleiros e não têm experiência. Trabalho também com charter, geralmente aqui na região de Angra e Paraty, onde tem mais lugares para passeios.
Antes de começarmos a entrevista, você disse: “Tive a sorte de encontrar meu lugar no mundo, entre o céu e o mar, velejando”. Pode falar um pouco mais sobre esse lugar no mundo?
Acredito que, ao longo das perguntas anteriores, eu já tenha praticamente respondido a isto, os insigts que tive no mar, É uma coisa bem pessoal, se sentir completa onde você está, fazendo o que está fazendo com as escolhas que faz.
Lembrei agora de uma pergunta que você me fez, sobre destino e acaso. Acho que as coisas acontecem ao acaso, pois eu estava no lugar certo (píer) e hora certa quando pela primeira vez me convidaram para velejar. Não acredito que as coisas estão predeterminadas para você, isso de destino. As coisas surgem e você agarra ou não, aceita abrir aquela porta e seguir para o desconhecido. Independente de qualquer coisa, as escolhas são suas, então não acho que tenha algo predestinado para ninguém, não. A gente tem que fazer as coisas acontecerem quando a gente quer.
Quando a gente quer muito uma coisa, quando se prepara, quando você canaliza sua energia, as coisas fluem mais fácil. Não que sejam mais fáceis porque não existam dificuldades no caminho, mas porque você está fazendo o que gosta, e as dificuldades fazem parte da vida, nem tudo são flores, mas as coisas fluem porque você está fazendo as coisas que resolveu fazer.
Não gosto de rotinas, sou antirrotina! Este meu jeito de ser se tornou um grande problema nos casamentos. Não é fácil para mim permanecer quieta em algum lugar. Por exemplo, foi difícil ficar “presa” pela pandemia em Ushuaia por meses, nada para fazer, acabei participando de algumas regatas virtuais para passar o tempo. Mas nada tira o tesão do vento nos cabelos, o leme nas mãos, e adrenalina nas veias.
Como foi navegar no Cabo Horn?
A primeira vez que fui para a Patagônia foi com um Dufour 29 pés, de bandeira francesa, e depois mais três vezes num Bruce Farr 40, com meu sócio, Eduardo Zanella. Todo ano, vamos trabalhar na Patagônia. A primeira vez, em 2018, fui e voltei duas vezes, a primeira no outono, e depois na primavera/verão. Em 2019 e 2020, novamente fui na primavera e voltei no outono, Enfim, já se foram quatro temporadas fazendo charter na região.
A regata Desafio del Cabo de Hornos foi organizada por uma escola de vela em Porto Williams chamada Cedena, e aconteceu em 2019 e 2020. Vieram barcos do mundo inteiro para participar, e memorável foi a primeira delas, quando estive em companhia de várias mulheres, isso foi uma boa surpresa, inusitada e divertida.
Em 2019, foram sete barcos participando do desafio, com tripulantes de sete nacionalidades. No total, 31 pessoas; dessas, somente seis mulheres, uma inglesa e uma alemã no barco francês, uma inglesa no barco chileno, uma japonesa no barco de mesma bandeira (ela está a bordo navegando pelo mundo há mais de 20 anos) e duas brasileiras no único barco representante do Brasil.
Nos tornamos amigas, solidárias, cúmplices e parceiras. Tínhamos algo em comum: éramos mulheres que viajavam sozinhas, livres e que aceitavam as oportunidades que a vida e o destino oferecem. Por exemplo, a alemã nunca tinha entrado num veleiro e foi assim mesmo para uma regata ao Cabo Horn, sem medo de ser feliz, coisa que muitos homens sonham e não realizam.
Já naveguei pelo Cabo Horn em condições as mais diferentes. Na primeira vez, as condições do tempo no dia da regata foram atípicas, com sol, vento de 8 a 12 nós e enfraquecendo, ondas de no máximo dois metros do lado de fora da Ilha Horn. Quase fazia calor!
Nas outras vezes, as condições foram muito diferentes. Uma delas com pouco vento e mar de ressaca, e outra com 25 nós e rajadas de até 35 nós e ondas de 3,5 metros com frequência de 5 segundos. Navegávamos usando um minitriângulo de genoa e o barco voava. Nunca se tem um dia igual ao outro na Patagônia.
Como é sua rotina atualmente?
Todos os anos, durante o verão ou pouco antes, eu vou para a Patagônia com meu sócio para trabalharmos com charters, e voltamos no outuno. Então, geralmente faço delivery do Sul do Brasil para Recife, barcos que irão competir na Refeno (Regata Recife – Fernando de Noronha). A Patagônia é onde está o que chamo meu lugar no mundo. Acredito que muitos navegadores se deixam ficar nas altas latitudes porque foram acometidos de uma grande paixão, dessas que são quase revelação, um marco. Porque se é difícil e hostil viver por lá, não conhecer é bem pior. A verdade é que o ser humano se acostuma com tudo, se adapta ao frio, à instabilidade do tempo, aos ventos. Basta um dia de sol para fazer que tudo valha a pena.
Minha experiência inesquecível nas altas latitudes aconteceu quando estava velejando e, de repente, senti o mundo ficar em silêncio. Começou a nevar. É como se estivesse num cenário de filme, é olhar à volta e transbordar de paz e felicidade. É saber que se você está ali onde escolheu estar, então, apesar de todas as dificuldades, cada milha navegada faz sentido e a gente tem consciência de que não precisa mais nada para se sentir vivo. Navegar na Patagônia muda sua forma de ver a natureza, de relacionar com o mundo. Se vale a pena? Toda paixão vale ser vivida e para alguns de nós o mar é um grande amor.