A Vendée Globe 2020-21

Jean Le Cam, herói desta Vendée Globe após difícil resgate de Kevin Escoffier, cujo barco partiu-se em dois, foi bonificado e classificou-se em quarto lugar

Jean Le Cam, herói desta Vendée Globe após difícil resgate de Kevin Escoffier, cujo barco partiu-se em dois, foi bonificado e classificou-se em quarto lugar

A mais formidável

Vendée Globe

Esta edição da Vendée Globe foi a mais espetacular entre todas, com perda de mastro, naufrágio, resgate e decisão por bonificação

Nesta sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021, faltam apenas dois veleiros atracarem em Les Sables d’Olonne, no litoral francês, para a nona edição da Vendée Globe ser encerrada oficialmente. O francês Yannick Bestaven, com seu Maître Coq, foi o vencedor deste grande desafio de circum-navegação marítima sem escalas. Contudo, quem acompanhou dia após dia esta fantástica aventura moderna, sabe que não é possível apontar apenas um nome vitorioso para o que foi esta regata.

Em todas as Vendée Globe anteriores, a história pode ser contada por disputas entre dois barcos ou no máximo três. Em algumas delas, nem isso, com um único velejador demonstrando superioridade com ampla vantagem sobre os demais. Por exemplo, foi o caso da segunda edição (1992-93), quando o francês Alain Gautier cruzou a linha de chegada seis dias de vantagem para antes do segundo colocado.

Desta vez, tudo foi completamente diferente de todas as edições anteriores. Pode-se dizer, a mais disputada e sensacional de todas as grandes regatas de volta ao mundo realizadas até hoje. Pois ninguém sabia ou podia sequer imaginar quem seria o vencedor, e menos ainda a formação do pódio, até nada menos que seis veleiros cruzassem a linha de chegada.

O Bureau Valée 2 recebeu duas penalidades (uma delas por queimar a largada), mas teve desempenho notável durante a regata

O Bureau Valée 2 recebeu duas penalidades (uma delas por queimar a largada), mas teve desempenho notável durante a regata

A Largada

Com um recorde de 33 veleiros largando, a Vendée Globe 2020-21 consagrou-se como a mais importante regata oceânica da atualidade. Foram 22 velejadores franceses, quatro ingleses, dois alemães e um representante para cada um destes países: Japão, Espanha, Suécia, Itália e Suíça. Os veleiros utilizados foram da classe Imoca (os mais rápidos em navegação oceânica), mas não exatamente iguais — alguns eram mais antigos ou não equipados com hidrofólios, enquanto uns poucos, de última geração, ofereciam design sofisticado e os tais hidrofólios.

A sede do evento foi Les Sables d’Olonne, pequena cidade na costa francesa. A largada aconteceu no dia 8 de novembro, com os coloridos veleiros partindo sob forte neblina para a grande aventura de volta ao mundo.

A descida do Atlântico

O principal destaque poucos dias após a largada foi o choque de um dos principais favoritos, o Charal, do francês Jérémie Beyou, contra um ófni (objeto flutuante não identificado). Bastante avariado, o Charal teve de retonar à Les Sables, e relargou mais de 2.500 milhas atrás do então último colocado.

Outros favoritos, todos com barcos modernos e equipados com hidrofólios, mostravam suas garras, como o inglês Alex Thomson (Hugo Boss) e os franceses Charlie Dalin (Apivia), Thomas Ruyant (Linked Out), Kevin Escoffier (PRB) e Nicolas Troussel (Corum L’Epargne). Entretanto, quem dominou a maior parte do Atlântico como líder foi o experiente francês Jean Le Cam (Yes We Cam!), navegando com um Imoca de velha geração e sem hidrofólios!

Ainda no Atlântico, outro favorito e também francês, Armel Tripon, sofreu danos em seu L’Occitane en Provence, o que o obrigou a permanecer inativo por dias, em reparos pelo próprio skipper. Retornou à competição, mas igualmente com grande atraso, ficando alijado da disputa. Um feito heroico pela tenacidade e determinação coube ao japonês Kojiro Shiraishi (DMG Mori), subindo por mais de duas semanas ao alto do mastro para conseguir um reparo e continuar, mesmo muito atrasado, na competição.

Abandonos

O primeiro abandono foi do Corum L’Epargne. Nicolas Troussel acordou de seu sono com um forte barulho e quando subiu ao convés, faltava o mastro do veleiro — isso mesmo, com brandos ventos alísios na altura das ilhas de Cabo Verde! Mas quem mais ocupou o noticiário foi o Alex Thomson, outro favorito destacado, quando o Hugo Boss, então líder, sofreu delaminação do casco. Thomson também lutou para realizar reparos, mas foi impossível continuar.

Não demorou para a Cidade do Cabo (África do Sul) tornar-se um refúgio para os Imoca que iam abandonando seguidamente. Além de Thomson, logo chegaram o francês Sébastien Simon (Arkea-Paprec) e a simpática navegadora inglesa Samantha Davies (Initiatives Cœur), ambos com danos sérios em seus barcos e obrigados a deixar a regata. Samantha ainda completou a volta ao mundo depois dos reparos, do mesmo modo que a franco-alemã Isabelle Joschke (MASCF). Esta última teve o barco em risco por conta de quebra na quilha já na volta ao Atlântico, refugiando-se em Salvador (BA).

Um abandono marcante em relação à tecnologia que envolve os veleiros Imoca foi o do francês Fabrice Amedeo (Newrest – Art et Fenêtres) — seu abandono foi causado por falhas do computador de bordo, a ponto de ficar impossível a navegação (falhas em todo o sistema, inclusive paralisando o piloto automático). Tivemos ainda a desistência do também francês Sébastien Destremau (Merci), perto da Nova Zelândia.

O náufragio do PRB

O caso mais dramático e que acabou influenciando diretamente o resultado da Vendée Globe 2020-21 foi o naufrágio do PRB. Inesperadamente, a organização recebeu um sinal de epirb (aparelho que emite dados de localização por satélite em caso de desastres marítimos) e uma curta comunicação de Kevin Escoffier, em 1º de dezembro. Seu barco se partira ao meio e afundara em escassos minutos, apenas tempo suficiente para Escoffier se lançar ao mar com seu bote salva-vidas. Teve início uma operação de resgate envolvendo quatro dos outros participantes da regata, próximos de Escoffier. Foram 24 horas de muita tensão, até que Jean Le Cam, já aplaudido pela mídia por sua fantástica participação até então, encontrou e resgatou o compatriota em meio à escuridão da noite, com ventos e ondas fortes dos mares do Sul.

O grande herói da nona Vendée Globe estava consagrado — Jean Le Cam. Em função do salvamento, ganhou uma bonificação de 16 horas para a classificação. E os outros três skippers receberam diferentes compensações em horas de acordo com a participação nas buscas: Sébastíen Simon (que não pode desfrutar da bonificação pois abandonou poucos dias depois), Boris Herrmann (Seaexplorer – Yacht Club de Monaco) e Yannick Bestaven. Essas bonificações pesaram de forma extrema na classificação final desta Vendée Globe, como veremos adiante.

A batalha decisiva

Os grandes protagonistas numa acirrada disputa pelo Oceano Pacífico e no retorno pelo Atlântico, na luta pela vitória, foram inicialmente Thomas Ruyant e Charlie Dalin, alternando-se na liderança. Mas ambos tiveram problemas em seus hidrofólios e foram obrigados a baixar as velas e seguir à deriva até conseguirem realizar os consertos necessários em seus barcos. Com isso, Yannick Bestaven, navegando com regularidade, tomou a liderança (e a manteve até a altura do sul do Brasil). Contudo, com desempenho superior, Dalin retomou a liderança, seguido por Ruyant. E então, um barco inesperado surgiu de forma extraordinária.

Pouco cotado antes da largada, não sendo sequer citado entre os favoritos, o francês Louis Burton (Bureau Vallée 2) foi a grande e boa surpresa desta Vendée Globe. Obrigado a ficar parado por mais de sete horas, pagando duas penalidades (uma delas por ter queimado a largada), ele ficara para trás dos dez primeiros colocados, mas, aos poucos, surgiu em segundo lugar no Índico, com desempenho notável. Então, Burton avisou ter problemas e foi obrigado a ancorar numa ilha remota ao sul da Austrália para reparos.

Depois de esforços notáveis, o francês retornou mil milhas atrás do então líder, o Maître Coq, de Yannick Bestaven. E então surge uma lenda, conforme passou a chamá-lo a imprensa francesa e europeia. Numa navegação corajosa e com barco um pouco inferior aos do grupo líder, jamais desviando das fortes tempestades e ondas dos mares do Sul, foi alcançando, um a um, seus rivais. Finalmente, assumiu a liderança, superando uma desvantagem de mil milhas (quase 1.900 quilômetros), sendo o primeiro a ultrapassar a linha do equador, de volta ao hemisfério norte.

O final foi o mais dramático na história da Vendée Globe e de uma regata de volta ao mundo. Louis Burton e Charlie Dalin travaram um duelo épico, seguidos de perto pelo alemão Boris Herrmann e, um pouco mais afastados, Yannick Bestaven, Thomas Ruyant (este muito prejudicado por ter perdido um hidrofólio) e Jean Le Cam.

O primeiro a completar a volta ao mundo foi Charlie Dalin vencendo o duelo com Louis Burton por apenas quatro horas. No entanto, todo o esforço de Dalin e Burton não foi o suficiente para conter as horas de bonificações recebidas pelos barcos envolvidos no resgate de Kevin Escoffier. Com isso, mesmo cruzando a linha de chegada perto de nove horas depois de Dalin, o grande vencedor da 9ª Vendée Globe foi Yannick Bestaven com seu Maître Coq. E o popular Jean Le Cam acabou ganhando o quarto lugar, seguido de outro skipper bonificado, Boris Herrmann.

Inacreditável o que aconteceu com o alemão. Faltando menos de cem milhas para a chegada, o Seaexplorer chocou-se com uma traineira de pesca espanhola e só conseguiu chegar num esforço dramático, com sérios danos estruturais no casco. Poderia ter vencido a Vendée Globe, pois era o barco mais bem posicionado entre os bonificados.

Charlie Dalin (Apivia) chegou na frente, mas terminou em segundo lugar, destronado pela bonificação do rival

Charlie Dalin (Apivia) chegou na frente, mas terminou em segundo lugar, destronado pela bonificação do rival

Classificação final da Vendée Globe 2020-21

1. Yannick Bestaven (Maître Coq) - França – em 80 dias 3h44m46s

2. Charlie Dalin (Apivia) - França

3. Louis Burton (Bureau Vallée 2) - França

4. Jean Le Cam (Yes We Cam) - França

5.  Boris Herrmann (SeaExplorer – Yacht Club de Monaco) - Alemanha

6. Thomas Ruyant (Linked Out) - França

7. Damien Seguin (Groupe Apicil) - França

8. Giancarlo Pedoti (Prysmian Group) - Itália

9. Benjamin Dutreux (Omia – Water Family) - França

10. Maxime Sorel (V and B – Mayenne) - França

11. Armel Tripon (L’Occitane en Provence) - França

12. Clarisse Cremer (Banque Populaire X) - França

13. Jérémie Beyou (Charal) - França

14. Romain Attanasio (Pure – Best Western) - França

15. Arnaud Boissières (La Mie Câline – Artisans Artipôle) - França

16. Kojiro Shiraishi (DMG Mori Global One) - Japão

17. Alan Roura (La Fabrique) - Suíça

18. Stéphane Le Diraison  (Time For Oceans) - França

19. Pip Hare (Medallia) - Inglaterra

20. Didac Costa (One Planet, One Ocean) - Espanha

21. Clément Giraud (Compagnie du Lit / Jiliti) - França

22. Miranda Merron (Campagne de France) - Inglaterra

23. Manuel Cousin (Groupe Sétin) - França

24. Alexia Barrier (TSE – 4MyPlanet) - França

25. Ari Huusela (Stark) - Finlândia

Não completaram: os franceses Nicolas Troussel (Corum L’Epargne), Kevin Escoffier (PRB), Sébastien Simon (Arkea Paprec), Fabrice Amedeo (Newrest – Art & Fenêtres) e Sébastien Destremau (Merci); os ingleses Alex Thomson (Hugo Boss) e Samantha Davies (Initiatives Cœur); e a franco-alemã Isabelle Joschke (MACSF).

Dados interessantes

Maiores singraduras (distâncias percorridas em 24 horas)

Sébastien Simon - 509,9 milhas (942.4 km)

Charlie Dalin - 505,5 milhas (936,1 km)

Alex Thomson - 501,8 milhas (929,3 km)

Maiores velocidades em 24 horas

Sébastien Simon - 21,2 nós (39,3 km/h)

Charlie Dalin - 21,1 nós (39 km/h)

Alex Thomson - 20,9 nós (38,7 km/h)