Diário de Bordo - Sidney-Hobart 2019

Foto: © ROLEX/Kurt Arrigo

Foto: © ROLEX/Kurt Arrigo

Assistindo e competindo

Emoções reais com um barco virtual

Por Roberto Negraes*

Resolvi competir na versão virtual/oficial da Sidney-Hobart para melhor acompanhar as emoções da famosa competição; e funcionou!

 

A largada (26/12)

Foi incrível assistir à majestosa (não há outra palavra para descrever) largada da Sidney-Hobart pela Internet, em tempo real (aconteceu às 11 da manhã, hora local; para nós no Brasil, 23 horas). Os mais de 160 veleiros inscritos, de maxi boats de 100 pés ou mais, a veleiros de 30 pés coloriram com suas velas pintadas de todas as cores o mar da Austrália, acompanhados por talvez mais de um milhar de barcos de todos os tipos, helicópteros, e milhares de pessoas em terra observando. Foi algo simplesmente espetacular. Parecia que a cidade de Sidney estava em festa nacional. Que pena que o esporte da vela oceânica não tem qualquer apelo em nosso país, nem mesmo sendo o iatismo o esporte que mais medalhas olímpicas trouxe para o Brasil (o curioso é que eu assistia à largada da regata real e conduzia meu barco virtual na largada em paralelo, ao mesmo tempo, em duas janelas do browser).

Largada da regata virtual, no mesmo horário

Largada da regata virtual, no mesmo horário

Resolvi competir na versão virtual da Sidney-Hobart (que também é oficial e é anunciada no site da organização do evento) para melhor acompanhar as emoções da famosa competição; e funcionou, como veremos adiante. Meu veleiro virtual, o Ondazul, passou exatamente pelas mesmas condições climáticas, mudanças nas previsões e imprevistos que aconteceram no mundo real. A organização da regata virtual escolheu como padrão (todos os barcos são iguais na versão virtual da Sidney-Hobart), veleiros da classe 40.

Se a gente quer ter um mínimo de condições de acompanhar de perto os líderes, precisa gastar créditos para equipar o veleiro. E como as previsões eram de apenas ventos leves e até calmarias, eu adquiri apenas um jogo de velas leves (a light jib e a light gennaker. Dos acessórios, escolhi apenas as catracas pro (winches pro), que diminuem o tempo de troca de vela e de bordo. A maioria das velas e equipamentos disponíveis, deixei de lado. Em tempo, um barco todo equipado chega a navegar a 1 nó ou mais de velocidade do que da maneira como deixei o Ondazul.

Na versão virtual da Sidney-Hobart, foram inscritos e largaram mais de 39 mil veleiros de todo o mundo, principalmente europeus, australianos e neo-zelandeses. O trajeto é de 628 milhas marítimas.

Três horas e meia depois da largada, os maxiboats já se destacam na regata real. Vai ser um belo duelo entre esses monstros de mais de trinta metros de comprimento. E os ventos começam fracos; contudo, no segundo boletim, é previsto um trecho de praticamente três horas com ventos mais fortes, entre 19 e 21 nós. Mantenho o Ondazul em 135 TWA usando a spinnaker até poder voltar à light gennaker, manobrando as velas de modo manual (existe recurso de troca automática de velas, mas não gosto de usar, prefiro fazer manualmente). Perdi mais de três milhas para o grupo principal (veleiros virtuais totalmente equipados) nestas circunstâncias de ventos mais fortes do que o previsto (o Ondazul apareceu na 2.300ª posição).

Imagem mostra calmarias por quase toda a região, menos ao sul da Tasmânia

Imagem mostra calmarias por quase toda a região, menos ao sul da Tasmânia

O dia amanheceu para nós, aqui no Brasil, e a manhã e a tarde se foram, com a volta dos ventos fracos, o que me permitiu uma recuperação parcial. Os veleiros reais e virtuais foram lutando para vencerem os ventos fracos, de apenas 7 a 8 nós. Assim, o Ondazul, quinze horas depois da largada, havia percorrido apenas 150 milhas náuticas. Ainda estamos próximos do litoral da Austrália. Os maxiboats já estão iniciando a travessia do Estreito de Bass.

Meu barco aparece agora entre os mil primeiros (variando entre as posições 800 e 900), o que para mim está bom demais, dada a desvantagem de velas e equipamentos. Se conseguir terminar entre os mil primeiros, realmente terei atingido a meta pessoal proposta para a Sidney-Hobart.

O amigo Kiko, do KikoPR BST, recém entrevistado em nosso site (leia a entrevista aqui), se mantém sempre entre os cem primeiros. No momento em que escrevo, está em 41º lugar. Estou na torcida por ele. Com dezenas de milhares de veleiros virtuais inscritos, é impossível definir uma classificação. As primeiras, e todas as demais posições, se alternam em minutos. Os barcos se mantêm todos muito próximos.

Segundo dia (27/12)

Dormi às 20 horas, depois de programar o barco, para colocar o despertador para a 1 da manhã, com o objetivo de observar as previsões meteorológicas. Surgiu previsão de ventos médios, entre 20 e 22 nós, exigindo uma heavy gennaker (vela que eu não tinha), e isso por um longo período para a travessia do Estreito de Bass. Ventos fracos e calmarias, só junto do continente australiano e da ilha da Tasmânia. O novo boletim confirma esses ventos por volta de 20 nós ou mais para o mar na região de Bass. Antes de chegarmos lá, contudo, acordei no início da madrugada e encontrei o Ondazul na 590ª posição, o que foi uma grande surpresa. E estou apenas a 4,3 milhas dos líderes depois 233 milhas percorridas. Mas agora vem o trecho de ventos mais fortes e minha alegria deve terminar.

Comanche, maxiboats vão se distanciando. Foto: © ROLEX/Kurt Arrigo

Comanche, maxiboats vão se distanciando. Foto: © ROLEX/Kurt Arrigo

Na regata real, o desempenho dos veleiros, preparados para regatas e de diversas categorias, vai nos deixando para trás. O vento é sempre norte. Sopra regularmente, variando apenas a velocidade entre 18 e 23 milhas. Ah, eu deveria ter previsto que no estreito os ventos viriam mais fortes! O que não importa, pois estou curtindo esta navegada virtual paralela à real. Aliás, na real, vejo pelo tracker na página da regata oficial, os líderes maxiboats já estão atravessando, e bem adiantados, o Estreito de Bass. O lider é o Infotrack, com o Black Jack, Wild Oats XI e o Comanche (este, recordista da travessia na regata anterior) bem próximos. Relembrando, o motivo para os barcos oficiais estarem tão destacados dos virtuais é que a frota no mar é heterogênea, contando com barcos IOR de várias classes, enquanto nós, virtuais, estamos conduzindo os Classe 40.

Continuo sem apontar um líder para a versão virtual. Mudam mais do que a opinião de minha ex-mulher numa loja de sapatos. Mas tem muito mar até Hobart. Entre os brasileiros, o melhor no momento é o Mizaza@BST, seguido do KikoPR BST (ambos da equipe brasileira BST). Estou a 3,84 milhas deles e a menos de 6 milhas do atual e efêmero líder, o francês Laurent_LC.

O vento continua norte-nordeste e o Ondazul está iniciando a travessia do Estreito de Bass. Estamos a quase 6 milhas dos primeiros, mas perdendo terreno. É que o vento aumentou, agora em 18, depois 20 e 22 nós. Vai ser difícil ficar entre os mil primeiros como desejava. Para se ter ideia, os líderes estão navegando a 13,6 nós, enquanto o Ondazul, no mesmo vento e TWA, segue a apenas 13,1 nós (e não tem handicap como na regata real). Depois do estreito, ao largo da Tasmânia, os ventos devem voltar a ficar fracos, e posso andar novamente junto. Agora estou com 282,8 milhas navegadas, faltam 360 milhas para Hobart. De qualquer modo, a finalidade de participar desta regata não é estar entre os primeiros, e sim acompanhá-la e estou me divertindo com as duas regatas (real e virtual).

Na regata real, o maxiboat Comanche assumiu a liderança, e já completou a travessia do Estreito de Bass, navegando agora ao norte da Tasmânia. Não me parece ser possível alcançá-lo, embora o líder de ontem esteja apenas 8 milhas atrás. Na verdade, os máxi estão embolados, um grupo de superbarcos numa distância máxima de dez milhas entre si. Devem terminar a regata ainda hoje. Mas o verdadeiro líder da Sidney-Hobart surge na classificação levando em conta o handicap, é o Daquet, barco francês, do grupo dos ORC 2.

O Ondazul está agora terminando a travessia do estreito de Bass. O vento está  em 21 nós, vou cambar para oeste, em direção à Tasmânia em poucos minutos. Nova previsão é de ventos mais fracos logo ao final do estreito, mas deve virar do Norte para o Sul, invertendo a direção em 180 graus! O meu barco já está a doze milhas dos líderes em razão destes ventos predominantes no estreito, e esta mudança radical de ventos, rondando inicialmente de nor-nordeste para noroeste, e logo para sul, vai exigir muita concentração e manobras para encontrar a melhor rota. Final difícil, com certeza. Vejo os veleiros reais se espalharem tentando contornar essa situação, alguns se afastam do litoral, outros se aproximam mais (os virtuais idem) da linha da costa.

Chegada do fita-azul da Sidney-Hobart. Foto: © ROLEX/Carlo Borlenghi

Chegada do fita-azul da Sidney-Hobart. Foto: © ROLEX/Carlo Borlenghi

E enquanto estamos nessa luta, o maxiboat Comanche cruza a linha de chegada na regata real num final dramático, pois embora estivesse com certa folga para seus adversários diretos, o Infotrack (2º), e o Wild Oats XI, quando faltavam apenas três milhas para a linha de chegada em Hobart, o vento... sumiu. Calmaria total. Os tripulantes chegaram a subir no mastro procurando onde haveria vento por parte, mas pouco depois uma leve brisa retornou, o suficiente para o Comanche finalizar a regata às 7 horas e 30 minutos desta manhã (tempo total de regata, 18 horas 30 minutos e 24 segundos). O maxiboat Comanche é um veleiro australiano com 30,49 metros de comprimento, 7,8 metros de boca. Na classificação por handicap, o veleiro que liderava, o Daquet, atrasou-se ao largo da Tasmânia, e quem venceu ao final foi o Ichi Ban, um IRC 1, veleiro neozelandês, de Matt Hallen.

O Ichi Ban, vencedor por handicap. Foto: ©Rolex/Stefano Gattini

O Ichi Ban, vencedor por handicap. Foto: ©Rolex/Stefano Gattini

Terceiro dia (28/12)

518 milhas percorridas, faltam apenas 146 milhas para Hobart. Estamos a meio caminho da costa da Tasmânia, no momento navegando em vento de 13,6 nós (o que finalmente é bom para o Ondazul) desenvolvendo 10,28 nós em 130 TWA.

Que chegada a dos virtuais! Ventos desencontrados, muito fracos, 4, 5 ou 6 nós, no máximo 8 nós. Por onde ir? E o resultado é meu barco estar agora navegando com ventos de 3 nós. Ao menos está todo mundo nessa. Uma verdadeira loteria o final desta regata. Os barcos se juntam todos e é a vez da sorte definir a classificação, embora a gente procure minimizar os estragos. Os barcos mais adiantados ainda levam vantagem, pois os ventos vão morrendo logo após a passagem deles.

O Ondazul, a empolgantes 4,7 nós na chegada. Mais tarde, o vento caiu para 3 nós

O Ondazul, a empolgantes 4,7 nós na chegada. Mais tarde, o vento caiu para 3 nós

A noite chega, e com ela o final da regata (versão virtual). Fantástica a disputa pela primeira posição, pelo menos uma dúzia de barcos em condições de vencer, chegando embolados, como ocorreu com os maxiboats na versão oficial da Sidney-Hobart. Por outro lado, tive a mesma experiência do Comanche ao término da regata. O vento parou para o Ondazul, quando faltava menos de uma milha para a linha de chegada. Alguns sopros de 3 a 4 nós. E os retardatários se aproximando em massa. É o tipo da coisa que deixa a gente nervoso, pois quando entrei na baía de Hobart, estava numa excelente 350ª posição. Mas é assim mesmo. E Os líderes, que estavam apenas sete milhas à frente cruzaram a linha de chegada quatro horas antes, graças aos últimos sopros de ventos. E pelo jeito, meu barco vai passar a noite meio parado e perdendo.

Fiquei três horas e meia em frente ao computador assistindo o Ondazul engatinhando até a linha de chegada nessa malvada calmaria. Enquanto isso, veleiros mais bem equipados tinham recursos para irem passando. Finalmente meu veleiro cruza a linha na 449ª posição! Como competi apenas com velas lights, contra 39 mil outros barcos, mesmo essa calmaria no final tudo foi uma alegria.

Conclusão: sinceramente, o real e o virtual realmente tem muita afinidade. E emoções idem.

RESULTADO NA SIDNEY-HOBART Virtual

O vencedor entre os virtuais foi o barco sueco Toppen, seguido pelo Ghostbuster TPN e o Taberly-AVL (ambos franceses), depois o MarcusBelgicus (belga) e o GreenPiece (francês).

O melhor dos brasileiros foi o Kiko, do KikoPR BST (entrevistado semana passada), e o Ondazul ficou em 4º lugar entre os brasileiros.

Para saber a classificação oficial por ordem de chegada da Sidney-Hobart 2019 (a regata real), acesse www.rolexsydneyhobart.com/standings/


Nosso velejador virtual

 
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Foto: Arquivo pessoal

*Roberto Negraes é jornalista especializado em náutica e navegação, um dos pioneiros do setor. Em sua primeira participação numa regata virtual, conseguiu um 8º lugar numa das etapas da Volvo Ocean Race de 2008-09. Depois disso, passou a praticar e tornou-se o melhor brasileiro e participante do continente americano durante anos, vencendo etapas de regatas internacionais como a Velux Five Oceans em 2010, vencendo na categoria SO (sem equipamentos extras) uma Solitaire du Figaro, 2º lugar na Cap-Istambul de 2010, e terminando entre os Top 10 em 16 grandes eventos internacionais. Na Volvo Ocean Race de 2011-12, esteve em 2º lugar até a sexta etapa, infelizmente não deu sorte nas duas últimas pernas e finalizou em 5º lugar entre 330 mil participantes de 184 países. Depois disso, parou de competir desde 2012, mas retornou agora às regatas virtuais, participando inicialmente de regatas como testes, para adaptar-se (a tecnologia desenvolveu-se muito nos últimos anos).