História de um resgate

À deriva

na pandemia

Por Regina Hatakeyama

Aproximação para o resgate: sem velas nem motor no meio do Atlântico, o capitão do Galápagos não imaginava a grande operação para salvar seu veleiro. Foto: arquivo Força-Tarefa

Aproximação para o resgate: sem velas nem motor no meio do Atlântico, o capitão do Galápagos não imaginava a grande operação para salvar seu veleiro. Foto: arquivo Força-Tarefa

Um veleiro de cruzeiro voltava do Caribe por conta do surto de covid-19, mas ainda bem longe da chegada, no meio do nada, o mastro quebrou, deixando seus tripulantes à deriva. Foi quando começou uma grande operação de resgate coordenada por velejadores

Já haviam-se passado 11 dias, desde a largada do Galápagos, um veleiro Delta 36, da ilha caribenha Maria Galante. Seu comandante, Leonardo Pereira, o “Leo”, e Bárbara Frade, companheira e única tripulante naquele que além de barco é também a residência fixa do casal, retornavam ao Brasil, terminando assim sua primeira navegação fora do país. Desde sua partida de Guadalupe, no dia 4 de abril, amigos velejadores vinham acompanhando a navegação deles pelo rastreador Spot que levavam a bordo. “Estávamos cruzeirando de boa pelo Caribe, quando começou o problema do coronavírus. Chegou um momento que todas as ilhas estavam fechadas, não tinha como fazer mais nada”, conta Leo. “Estávamos na ilha Maria Galante, ao lado de Guadalupe. Após perceber que estava apenas no começo e ia durar meses o efeito coronavírus, decidimos retornar ao Brasil com o veleiro.”

Durante cinco dias, Leo e Bárbara aproveitaram ventos de sudeste e abriram o máximo possível ao norte, a fim de orçar direto para Natal, no Rio Grande do Norte. Até que por volta de 1h30 da madrugada, sob ventos entre 20 e 25 nós, o mastro de alumínio tombou. “Estávamos com a vela principal no segundo rize e com vela de tempestade no baby stay. O estai de força [ovém inferior. N.R.] de bombordo quebrou na parte superior do mastro, fazendo o mastro quebrar no meio e cair”, relembra Leo.

Sem mastro, sem velas, o momento era crítico. Era preciso administrar a situação e evitar mais danos ao veleiro. Leo, que veleja há cinco anos e mora a bordo desde 2017, conta: “Imediatamente, começamos analisar como resgatar o máximo de coisas possível. Começamos pelas velas, retiramos e recuperamos todas as velas. Depois, fomos puxando os pedaços do mastro, que se dividiu em três partes. Recuperamos a retranca completa”.

Tudo foi feito com a preocupação de não afundar. “Estávamos sempre analisando e protegendo o casco do veleiro. O balanço das ondas fazia as peças se chocarem”. Depois de trabalharem 12 horas sem interrupção, Leo e Bárbara, exaustos, resolveram encerrar e jogaram o último pedaço do mastro com estais no mar.

Àquela altura, o Galápagos boiava a umas mil milhas de qualquer continente, e seus ocupantes estavam prontos para retomar a viagem. Estávamos muito distantes e fora da rota de navios. “Resolvemos continuar o máximo possível no motor antes de acionar o resgate pelo localizador de emergência, porque não queríamos preocupar a família onde seria quase impossível fazer um apoio de barco. Tínhamos o tanque cheio e uma reserva de 300 litros de diesel em galões”, continua Leo.

Ele e Bárbara sabiam que esse combustível seria suficiente para percorrer cerca de 600 milhas, apenas. A motor, não conseguiriam chegar a lugar algum. Então, decidiram se aproximar o máximo possível do Brasil, onde seria mais fácil obter apoio e um possível resgate, e tomaram o rumo direto para São Luís, no Maranhão. Conseguiram, em seis dias, navegar 697 milhas.

Um dia antes de o diesel acabar de vez, acionaram o localizador de emergência, mas somente para recado de apoio para minha família. O motor parou quando faltavam aproximadamente 400 milhas para São Luís. Aí, conseguiram fazer contato com um navio cargueiro: “Ele conseguiu avisar a Marinha que tínhamos o mastro quebrado. Ficamos dois dias à deriva e, ao analisar nosso rastro, vimos que estávamos sendo empurrados para o Brasil. Então, resolvemos improvisar um mastro e tentar continuar seguindo para o Brasil. Coisas de filme que já vimos, né?”, diz o navegador, que, com essa mastreação de fortuna, cobriu 71 milhas em um dia, feito que o deixou empolgado, pensando: “Vai dar para chegar em cinco dias ao Brasil”.

Mas a alegria durou pouco. “Após mais 50 milhas no segundo dia, o vento mudou de leste para sul, vindo da direção exata de onde íamos, e paramos de conseguir fazer o rumo para o continente. Voltamos a ficar à deriva”, lamenta o capitão.

Leo e Bárbara, que participa de todas as funções no barco, não chegaram a sentir nenhum temor de que algo ruim pudesse acontecer. “Tínhamos uma sensação de que tudo ia dar certo. Estávamos bem provisionados de alimentos e água. Até tomamos umas cervejinhas durante a deriva”, diverte-se Leo. “Só a viagem mudou, de uma linda travessia oceânica para uma navegação que devia acabar logo. Sem o mastro, o balanço do veleiro fica mais chato e mais forte, atrapalhando as atividades diárias”.

O que o casal, que mora no veleiro e faz passeios em esquema de charter, não sabia é que, no Brasil, estava em curso uma grande operação de resgate, que começara havia dois dias. Membros do Grupo Força-Tarefa Brasil — criado pelo navegador Silvio Ramos — vinham observando o Galápagos pelo rastreador de bordo desde sua partida de Guadalupe, e notaram por sua trilha que algo não estava bem. Sem meios para se comunicar diretamente com o barco, o grupo recebeu informações de que um navio porta-contêineres havia reportado que o Galápagos não tinha mastro, o que fez a Força-Tarefa entrar rapidamente em ação. A partir daí, dia 25 de abril, mensagens de Whatsapp começaram a correr freneticamente entre a comunidade de velejadores:

  • O Galápagos quebrou o mastro e estava indo a motor para São Luís. Hoje passou por um navio mercante com o qual fez contato rádio, dizendo que estão bem a bordo, mas com pouco diesel.

  • Barco de ajuda acaba de partir de SLZ com destino ao Galápagos. Leva diesel, água, apoio. Deve chegar entre 30 e 48 horas.

  • Estamos em contato constante com a MB, que por duas vezes iria iniciar uma operação SAR (que necessariamente salva vidas e não propriedade, então certamente terminaria com a perda do barco). A situação não é de perigo imediato. Os dois estão bem a bordo.

  • A operação de ajuda que está sendo montada tem sido participada à Marinha, com a qual temos coordenado todas as ações. A ação da Marinha do Brasil até o momento tem sido perfeita, coordenada, e não impulsiva ou estabanada.

  • A operação de ajuda ao Galápagos segue. Devem ser alcançados até o final da tarde.

  • O Galápagos não avança desde as 03h30min desta madrugada, mas continua transmitindo através de seu Spot sem nenhuma mensagem de ajuda, e seu rastro não indica deriva.

  • Apenas quando forem alcançados saberemos qual a real situação a bordo.

  • A operação de ajuda ao Galápagos segue bem, com rendez-vous previsto para amanhã ao meio-dia num ponto a 235 milhas ao N de SLZ.

  • O Galápagos segue se deslocando com velocidades de 2 a 2,5 nós em direção a São Luís, o que é bom sinal.

  • Galápagos vai andar, se tudo continuar igual à última hora, 111 milhas, e faltariam 311 milhas até Belém. Assumindo manter as mesmas condições, apesar de mais pesado, precisaria das 37 horas para o encontro, mais as 103 horas para alcançar Belém. Previsão de 140 horas no total. Em 6 dias teremos todos bem, em terra firme. Isso é uma previsão...

  • Não temos nenhum contato com o Galápagos, não sabemos o que acontece a bordo. Agora estão derivando lentamente para W.

  • O catamarã deve alcançá-los perto das 16h. Agora está fazendo 7,5 nós.

  • Difícil entender isso... pois, se acabou o diesel, não conseguiria ir contra corrente, fico pensando se ainda está com pedaços do mastro e estaiamento a contrabordo, batendo no casco. Já fez outras vezes esse tipo de movimentos. Agora parece estar à deriva, com vetores de vento, ondulação e corrente influenciando. Logo saberemos...

  • O resgate deve chegar neles entre 15h30min e 16h. Estão avançando a 7,5 nós. Galápagos continua derivando para W.

  • Nosso valioso voluntário Décio Sá arrebatou os eletrônicos a serem usados no resgate e levou de avião particular para S.Luiz, de onde partiu o cat [catamarã] Larabela que foi levar o nosso outro voluntário César Mello para ajudar o Capitão Leo no manejo do Galápagos, e o acompanhamento da operação toda pelo nosso voluntário Hans Hutzle! Força tarefa fazendo o que foi criada para fazer! Way to go FTFNP!!!

Voltando para o Galápagos à deriva, e então em seu 21º dia de mar, o resgate, por fim, apareceu. Leo descreve a alegria daquele encontro: “Não consegui falar ao rádio, pois esperava um rebocador. Ao ver um catamarã, me emocionei imaginando que a irmandade da vela teria agido. Foi a Bárbara que teve que conversar no rádio, pois não saía nada de minha garganta travada”.

Para o resgate, os navegadores mais experientes da Força-Tarefa tiveram que considerar os ventos, a zona de convergência (ITCZ), a corrente e a rota do Galápagos, a fim de poder alcançá-lo com precisão. E foi o que aconteceu. Enquanto isso, os integrantes do grupo em terra trocavam mensagens, comemorando:

  • O catamarã Larabela, que foi enviado para prestar ajuda, acaba de encontrar o Galápagos. Todos estão bem a bordo.

  • O barco realmente quebrou o mastro. Neste momento está sendo transferido diesel e depois as duas embarcações seguirão viagem juntas para São Luís, cerca de 260 milhas.

  • Todos bem a bordo.

  • Complementando as informações, o resgate foi feito pelo Larabela, um catamarã Praia 47 de São Luís, contratado pelo Cap. Délcio (Belém) e capitaneado voluntariamente pelo César Mello que levou equipamentos de comunicação por satélite conseguidos por empréstimo do Lívio de Belém. Todos foram transportados pelo amigo Tony Saraiva em seu avião particular, cedido gratuitamente, para acelerar a saída do Larabela, que foi armado em São Luís com a ajuda do André e do Sérgio Marques, e levou a bordo 3 tripulantes (além do César Mello). O grupo de ajuda foi reunido por iniciativa do Cleidson (Torpedinho) Nunes, contava também com a consultoria técnica do Cap. Ferrari e minha ajuda  Hans Hutzle na navegação e comunicação. Participaram também membros da família, que suportaram os custos pesados da operação (apesar de inúmeras ofertas de ajuda que recebemos de diversas pessoas de todo o Brasil). Desculpem se esqueci de mencionar alguém, mas foram muitos que também participaram de forma indireta.

  • Tudo isso foi conseguido num intervalo de tempo curto de apenas 2 dias!

  • A Marinha acompanhou toda a operação, tendo sempre se colocado à disposição para iniciar um SAR (Search and Rescue, busca e resgate) assim que necessário (o que evitamos pelo risco de abandono forçado da embarcação).

  • Esse episódio mostrou a força que os velejadores têm em um momento de dificuldade em ajudar um amigo do mar. Superfeliz de ter ajudado e que todos a bordo estão com saúde e salvos. Dia de celebrar a vida!!!

  • Obrigado a vc Delcio, que foi o primeiro a "levantar a bandeira" neste grupo, e "mergulhou de cabeça", e aos outros integrantes do grupo, e a todos os outros Homens do Mar que participaram da ajuda ao Galápagos!

  • Veleiro Galápagos e seus tripulantes, Léo e Bárbara, sãos e salvos. Missão cumprida!

  • Fizemos contato com eles as 14:50h do dia 25/04, felizmente com mar calmo a cerca de 280 milhas ao norte de São Luiz. Segundo o Léo me falou, estavam velejando no segundo rize com ventos de 20 nós quando um dos ovéns de força soltou.

  • [16:33, 27/04/2020] Agradecimentos públicos ao velejador Delcinho pelo empenho em todas as fases do resgate, ao Hans pela excelente navegação e a TODOS que nos ajudaram a chegar lá e trazê-los de volta em segurança. BZ

  • Parabéns ao Capitão Cesar que conduziu tudo de forma magistral!

  • Parabéns a todos envolvidos diretamente no resgate, preciso e eficaz! Bravo!!

  • Capt. Léo, sua querida Bárbara e o valente Galápagos já chegaram sãos e salvos à terra.

E assim, novamente com combustível no tanque, o Galápagos navegou por cerca de mais dois dias até, finalmente, aportar em São Luís. Depois de refeito desse contratempo no mar, Leo respondeu a algumas perguntas do Minuto Náutico:

- O que você considera que foi fundamental para o seu salvamento?

O bom relacionamento e o espírito de todos velejadores do Brasil. Somos uma irmandade muito forte. Esse companheirismo foi fundamental para ajudar a minha família e providenciar o resgate. Tudo foi feito por velejadores, toda logística e execução foram realizadas por velejadores de vários lugares. Foi perfeito ver um catamarã como “navio de resgate”. Foi a imagem perfeita, e a primeira hora que aliviei a postura para manter a calma da companheira. Não teve jeito, comecei a chorar de emoção por ser um catamarã no resgate.

- Qual lição fica dessa história?

Que não é difícil voltar do Caribe para o Brasil direto. Poucas pessoas fazem essa rota na contramão. As ondas, correntes e ventos normalmente estão sempre contra, dificultando a volta ao Brasil. Este ano, outro veleiro antes de mim fez o mesmo trajeto e concluiu sem problemas. Então, dá para voltar na contramão, sim.

- Qual a situação atual e o futuro do seu veleiro?

Estamos em São Luís, no Maranhão. Estamos descansando do mar uns dias e vamos continuar descendo rumo a Angra dos Reis. Estamos aguardando uma posição da fábrica do veleiro para ver como será a contrapartida deles. Pois é um veleiro do ano 2015 e não era para ter acontecido essa quebra do mastro. Independentemente disso, o plano é colocar um mastro novo o mais breve possível e continuar as viagens no Brasil. Afinal, moramos a bordo, temos que manter a casa arrumada.

- Você gostaria de acrescentar algo mais?

Fiquei sabendo dos irmãos que viabilizaram o resgate. Quero agradecer e não sei como retribuir essa ajuda. Obrigado a todos:

Torpedinho (Recife) e Délcio (Belém) - tomaram frente e organizaram o resgate.

André - organizou tudo no barco de resgate em São Luís.

César Mello - largou tudo em Belém, assumiu o barco como capitão e foi me resgatar de graça.

Hans (Recife) - assumiu todo o plano de posição de encontro e foi o porta-voz do grupo de resgate.

Lívio - se encarregou de organizar os instrumentos de comunicação para achar o Galápagos.

Toni - ofereceu seu avião para levar o capitão e instrumentos de Belém até São Luís.

Capitão Ferrari - sempre a postos com atualização das notícias aos grupos em geral.

Léo da Marina Aven (São Luís) - disponibilizou uma vaga para deixar o Galápagos após o resgate.

Lamartine - alugou seu catamarã para fazer o resgate.

Moacir e Márcia (São Luís) - disponibilizaram um veículo para organizarmos nossas coisas em São Luís.

E aos demais, que não mencionei aqui, pois ainda estamos nos atualizando sobre os fatos e pessoas que nos ajudaram direta ou indiretamente. Obrigado pelas mensagens de apoio e preocupações.

Vídeo do resgate do Galápagos. Arquivo Força-Tarefa Brasil