Karina e Hans, vela em família
França–Pernambuco
A primeira aventura do Aventureiro 4
Por Regina Hatakeyama
O casal de velejadores Teresa Karina e Hans Hutzler relatam, em imagens, sua primeira viagem a bordo de seu novo veleiro, um Outremer 51, de fabricação francesa e o primeiro da marca no Brasil
Alegria se divide! Quer coisa melhor que comemorar as conquistas com os amigos e inspirar outras pessoas a investir e insistir nos próprios sonhos? Pois Teresa Karina e Hans Hutzler, um casal muito conhecido e querido no meio da vela, decidiu compartilhar a viagem inaugural do Aventureiro 4, um catamarã a vela Outremer 51, no Instagram. Foi por meio dessa mídia social que os Hutzler relataram a navegação desde La Grande-Motte, localidade no sul da França, onde fica o estaleiro, até o Recife, onde residem.
Foram 32 dias de viagem do sul da França até Salvador, o porto de entrada no Brasil. Destes, 23 dias de navegação, tendo a maior pernada 16 dias (Tenerife – Salvador). Eles bem que poderiam ter contratado um skipper profissional para trazer o barco, poupando-se, assim, de todo o trabalho que um transporte desse tipo implica, a começar pelo planejamento do percurso, com escalas para abastecer-se de água, combustível e alimentos, até a rotina diária ao longo de várias semanas a bordo — detalhe: da tripulação, composta pelos amigos Rafael Chiara e Paulo Carvalho, fez parte também o filho mais novo do casal, Felipe, com 8 anos recém-completados. Mas, que nada... O hábil capitão Hans, que foi contratado, inclusive, como navegador do veleiro Saravah na regata Cape to Rio, no início deste ano (saiba mais aqui), tinha as competências necessárias para realizar, ele próprio, essa tarefa. E assim foi.
“O Outremer sempre foi o sonho do Hans, desde que resolveu migrar de monocasco para catamarã”, conta Karina, ela também velejadora. “Tivemos antes três monocascos e dois outros catamarãs, nos dando aprendizado e poupando pra atingir o objetivo. É um barco seguro, rápido e, ao mesmo tempo, confortável”, comenta.
Sob o comando de Hans, o Aventureiro 4 saiu de La Grande-Motte no dia 11 de agosto navegou pelo Mediterrâneo até Gibraltar, com escalas em Formentera (Ilhas Baleares) e Almeiria, na Espanha. Depois do Estreito de Gibraltar, o Outremer 51 dos Hutzler seguiu para Tenerife, nas Ilhas Canárias. Em cada parada, um aprendizado, uma surpresa com os costumes locais, com a estrutura das marinas. Mas um ponto alto dessa incrível experiência por portos internacionais aconteceu bem longe da civilização, entre a África e o Brasil, na chamada Amazônia Azul: uma noite amarrados na popa do barco de apoio do Arquipélago de São Pedro e São Paulo, antes de seguirem direto para Salvador, porto de entrada do Aventureiro 4 no continente, para ser o primeiro Outremer de bandeira brasileira.
Bateu uma inveja dessa experiência? Pois saiba que o Aventureiro 4 será operado comercialmente para participação em regatas e saídas para jantares a bordo. Fora isso, revela Karina, “os planos para o futuro próximo incluem um ano sabático pela costa leste brasileira e a participação regata Cape2Rio”. Aliás, o Aventureiro 4 é o primeiro multicasco e primeiro barco brasileiro inscrito na próxima edição dessa corrida marítima, em 2023.
Confira, abaixo, nossa entrevista com Karina e Hans.
KARINA:
Por que buscar o barco pessoalmente na França, em vez de contratar um serviço de delivery?
A Outremer não entrega barco como se entrega carro, como muitos estaleiros fazem, com um briefing de uma ou duas horas, entrega da chave e pronto. Na entrega da Outremer, temos quatro dias com o pessoal do estaleiro, saímos todas as tardes, pra subir todas as velas, testar todos os sistemas com o barco funcionando na água. Temos, durante a manhã, instrução do funcionamento dos sistemas, hidráulico, elétrico; temos um dia com o pessoal dos eletrônicos, que pra gente foi mais de um dia, e só quando termina todo esse procedimento é que a gente tá pronta pra sair pra teste de mar, só a gente. Então, nós ainda passamos mais uns dias em La Grande-Motte, organizando as coisas do jeito que a gente queria e continuando a configuração dos eletrônicos, porque pedimos muito mais coisas que o habitual, e acabou dando mais trabalho pra empresa e pra gente.
Passaram por algum perrengue com o barco?
Chegamos à França no dia 20 de junho e saímos pra velejar no dia 3 de julho. Nesse primeiro dia, pegamos 40 nós de popa saindo de La Grande-Motte, fomos ancorar na ilha de Frioul. A gente sabia que ia entrar bastante vento, mas entrou mais do que a gente esperava, deu bastante trabalho pra ancorar. No segundo dia, a gente estava numa calanque (no Mediterrâneo, uma baía em uma costa escarpada. N.E.), próximo de Marselha, e de noite tinha muitos barcos; a gente acabou ficando com a ancoragem muito apertada, sem muita amarra na água, e entrou também um rajadão de mais de 40 nós, o barco garrou e a gente bateu num outro barco. Fez uma mossa, um buraquinho na lateral do barco,mas nada de grave, foi tranquilo o conserto, não dá nem pra ver.
No terceiro dia, já em terra, numa cidade chamada La Ciotat, o nosso filho sofreu um acidente. Ele e o pai vinham num patinete elétrico, que era nosso meio de transporte nas cidades. Faltava uma pedrinha no calçamento, a roda dianteira do patinete encaixou nesse buraquinho e eles capotaram pra frente. O Felipe caiu de boca no chão, foi um corte bem feio, realmente separou o lábio e quebrou três dentes permanentes, também atingiu o canino de leite, e precisou fazer uma pequena cirurgia, num hospital de Marselha, mas fomos extremamente bem atendidos em La Ciotat, veio ambulância, polícia, tudo que tinha direito, muitas pessoas pararam pra nos ajudar. Nosso período de testes, em que a gente pensou em ir até a Córsega, depois as Baleares e voltar pra La Grande-Motte, acabou virando de pernas pro ar, né? Porque nossa prioridade passou a ser recuperar o Felipe pra que ele pudesse vir na travessia.
Qual a melhor parte dessa viagem?
Teve muita coisa, mas a parada em Penedos de São Pedro e São Paulo foi muito especial. A gente vinha de uma perna longa, de 16 dias de mar, desde Tenerife, nas Canárias, e ver o primeiro pedacinho de terra que era brasileiro, na verdade umas pedronas no meio do mar, uma natureza selvagem… O pessoal foi muito legal de deixar a gente amarrar na popa do barco de apoio (do arquipélago), a gente dormiu a noite toda. Chegamos já no finalzinho da tarde, eu acho que foi muito especial, a gente lembra de muitos outros momentos, mas a parada em São Pedro e São Paulo, que é um lugar tão difícil de se chegar, pra mim, foi o ponto alto.
Você e Hans correm regatas em dupla, não é? Em qual classe?
A gente veleja em dupla, de Dingue, há cerca de seis anos, corremos o Brasileiro de Maria Farinha (em Pernambuco) desde 2015, vencemos o Brasileiro em Ilhabela em 2017, Brasília em 2018 e fomos tricampeões brasileiros em 2019, no Clube Naval Charitas, em Niterói.
Sendo velejadores e de Pernambuco, é de imaginar que já tenham participado de algumas Refenos (Regata Recife-Fernando de Noronha)…
Eu já corri treze Refenos, já fui fita azul em 1993, a bordo do Chrisleen, na primeira regata que teve contravento, foram 47 horas, imagina, que diferença para o recorde da regata, do Adrenalina, que são 14 horas e alguma coisa (14h34min54s), foi uma regata bem dura, mas bacanérrima.
Mas tem uma Refeno em que a gente não foi fita azul, muito longe disso, e que pra nós foi muito especial. Foi a primeira num barco nosso, em 2003. Tínhamos um Delta 26, e fomos com a nossa filha, Marina, de um ano e dez meses de idade, que tinha feito uma cirurgia do coração oito meses antes. Ela não falava ainda, mas quando viu Fernando de Noronha alguma coisa ligou naquela cabecinha e ela começou a falar.
A primeira frase dela nunca vou esquecer. Foi: “Papai, mamãe, quanta iaia tem aqui, que lindo”. A gente chegou com uns pássaros voando em cima da gente, era início da tarde, e com aquela gritaria dos pássaros, ela ficou maravilhada. A partir daí, passou a falar tudo com plurais, coisa mais linda.
Acho que 2015 também foi uma Refeno muito gostosa, foi quando a gente foi no catamarã Aventureiro 3, que era um Fontaine Pajot, foi uma tripulação muito legal, nós tínhamos três adolescentes a bordo, nossa filha, a Nina filha do Leo do Museu do Tubarão em Noronha e o Yuri Reithler, que era técnico de Marina (então velejadora de Optimist), foi uma regata muito bacana e eu espero que a próxima, em 2021 seja uma também muito especial a bordo do nosso Outremer, vai ser a primeira dele, já que a deste ano foi cancelada.
HANS:
Saiu tudo como planejado?
Claro que não! Planejamentos são feitos para não serem seguidos! Na verdade, o planejamento foi perfeito: conseguimos juntar uma tripulação nota 10; estávamos muito bem estocados de tudo (água, comida, peças de reposição, ferramentas e engenhosidade); o barco e a tripulação estavam adequadamente preparados para a travessia. Nada quebrou. Conseguimos fazer a travessia sem pegar mau tempo ou calmaria. Mas as paradas não foram nem onde nem quando planejadas. Porém, é preciso, além de planejar, ter flexibilidade para poder corrigir os planos à medida que as necessidades aparecem.
Qual a diferença entre correr uma Cape to Rio e vir do Mediterrâneo até o Brasil?
Uma C2R (Cape to Rio) é, em primeiro lugar, uma regata. O barco e a tripulação vêm sendo exigidos ao máximo o tempo todo. Já, nesta viagem, nós tínhamos um objetivo claro: trazer o barco e a tripulação em segurança ao seu destino final. Não que numa regata isso não esteja entre os objetivos, mas numa travessia este é o objetivo principal. A razão de toda a viagem.
Qual sua experiência com travessias?
Não só corremos regatas de Dingue (somos tricampeões brasileiros), mas de oceano também. A Karina já participou de 13 Refenos e eu, 14.
Você é prático de porto, não é? Isso ajuda em alguma coisa no caso de uma navegação como a que acabaram de completar?
Ser prático (de navios) certamente ajuda muito. O conhecimento sobre os navios, seus perigos e suas dificuldades, ajuda quando encontramos um daqueles monstros no meio do oceano. E uma miríade de conhecimentos necessários à profissão também se mostra muito útil: manobras, navegação, meteorologia, comunicação, administração de recursos de passadiço, RIPEAM, e muito mais.
Vocês dividiam o leme, como eram os turnos?
Éramos cinco a bordo: eu, Rafael e Paulinho dividíamos os turnos em duas horas de serviço por quatro de descanso, 24 horas por dia. Karina ficava com a parte mais pesada do trabalho: cuidar de Lipe (incluindo o homeschooling) e alimentar a todos, e estava sempre à disposição para pegar um turno se fosse necessário.
Por que um catamarã?
Por que são muito mais confortáveis navegando, mais rápidos, mais estáveis. Catamarãs como o Outremer, projetados e construídos para travessias oceânicas com segurança e velocidade, lhe dão mais opções de fugir ou evitar mau tempo, transformando diretamente sua velocidade em segurança. São insubmersíveis: cinco compartimentos estanques diferentes em cada casco e uma construção leve que boia. E ao chegar ao seu destino, têm menor calado (no nosso caso, apenas 0,95 m), chegando em lugares que outros barcos menores não chegam.
Por que essa marca e esse tamanho de barco?
A Outremer é uma tradicional fabricante francesa de catamarãs, é a marca dos sonhos de quem realmente gosta de velejar de catamarã. Como disse acima, os barcos são projetados e (bem) construídos para atravessar oceanos com segurança, velocidade e conforto. Têm um layout muito bem bolado, o que permite que barcos de 50 pés sejam facilmente tocados por apenas uma pessoa. As instalações dos sistemas de bordo são primorosas, e surpreendem pela qualidade, acessibilidade e simplicidade até a nós, que vínhamos de outro “cata” (marã) também francês de um fabricante renomado.
Algum conselho para quem queira fazer uma viagem como essa pela primeira vez?
Planejem, preparem, estudem. Mas principalmente, não esperem muito. A vida é agora, não podemos adiar nossos sonhos esperando apenas o momento ideal. Partam! Se ainda não der para atravessar o Atlântico no “cata" dos sonhos, não deixem de atravessar a baía no seu pequeno barquinho. Naveguem! Se possível, levem seus filhos. Ensinem o gosto e o respeito pelo mar e pela natureza. Bons ventos!!!
Alguns números da viagem dos Hutzler
La Grande-Motte – Almería
Distância: 537 milhas
Milhas navegadas: 640
Horas de navegação: 71 (2 dias, 23 horas)
Parada em Formentera: 11 horas parada
Motor: 76 horas
Velocidade média: 9,0 nós
Almería – Tenerife
Distância: 866 milhas
Milhas navegadas: 890
Horas de navegação: 113 (4 dias, 17 horas)
Motor: 60,5 horas
Velocidade média: 7,8 nós
Tenerife – Salvador
Distância: 2.845 milhas
Milhas navegadas: 3.087
Horas de navegação: 386 (16 dias, 2 horas)
Paradas no Arq. S. Pedro e S. Paulo / Recife: 17 horas
Motor: 53,6 horas
Velocidade média: 8 nós
Total
Distância: 4.248
Milhas navegadas: 4.617
Horas de navegação: 570 (23 dias, 6 horas)
Parada: 28horas
Velocidade média: 8,1 nós
Motor: 190,5 horas
Consumo de combustível: 524 litros
Consumo do motor: 2,75 litros/hora
Funcionamento do gerador: 42,3 horas
Consumo de combustível do gerador: 50 litros
Consumo do gerador: 0,85 litros/hora