Naufrágio

O Bayesian ancorado na Sicília, Itália. Foto: Sfischer - Creative Commons

Bayesian

Uma trágica ironia

Por Alvaro Otranto

O que se sabe e o que não sobre o naufrágio na Sicília que está intrigando o mundo

Caso você leitor tenha assistido à vídeo-entrevista do Marcio Dottori comigo para o MINUTO NÁUTICO, deve ter ficado com mais dúvidas do que certezas. Devido ao pouco tempo possível, apenas tocamos levemente nos pontos de maior dúvida a respeito desta tragédia que foi o naufrágio do superiate Bayesian.

Desde o início a imprensa soltou opiniões e levantou suspeitas, que, a meu ver, visavam tão somente criar interesse pelas matérias e acelerar a “clicagem” em seus canais.

O que sabemos que não aconteceu? As autoridades italianas, sob forte pressão, se fecharam como ostras, pois os interesses são enormes. Entre eles, o construtor (um dos maiores grupos do país), a seguradora do barco e das vítimas, a RINA (sociedade classificadora que aprovou o projeto e a construção do barco) e a grande imprensa internacional. Assim, assumiram a centralização de todos os dados, para impedir que especulações desviem os rumos e os resultados da investigação.

Nas primeiras notícias, culparam o mastro por ter quebrado e causado o naufrágio, o que foi descartado pelos mergulhadores logo no primeiro momento, antes de ser imposta essa comentada e necessária lei do silêncio. Foi anunciado que o casco não tinha nenhum tipo avaria e que o gigantesco mastro jaz intacto. Veremos adiante que a imprensa chegou perto, mas talvez não tenha interpretado a situação de forma correta.

Também comentaram sobre o barco estar ancorado ou muito longe ou perto demais, algo que até agora não entendi. O Bayesian afundou com a âncora bem unhada no fundo. Ele estava parado a meia milha náutica da costa, o que é quase um quilometro, algo muito bom para um barco destes. Outra coisa é que a lâmina de água tinha 50 metros, e nem de longe poderia ter batido em qualquer coisa.

As “janelas” e portas estavam todas abertas! Sim, é possível. Diferentes dos norte-americanos, os europeus adoram poder passar alguns momentos no calor. Não é raro barcos com excelentes centrais de ar condicionado ficarem com eles desligados, e as vigias e gaiutas todas abertas. Isso pode ter facilitado a rápida e enorme inundação.

Deixaram os pórticos e plataformas de acesso do casco abertos, como a lateral, que poderíamos compreender como um tipo de entrada de serviço, por onde se lançam equipamentos como motos aquáticas, pranchas, caiaques e mesmo equipamentos de mergulho. Sabemos que no Bayesian havia uma plataforma na popa que se costuma chamar de beach club, pois é lá que ficam as cadeiras, o bar e todo o necessário para a diversão dos passageiros. Considero isso pouco provável, pois é meio que uma rotina em qualquer iate se recolherem todos os brinquedos, fechando-se qualquer possível acesso ao interior do barco.

A quilha estava abaixada ou suspensa? Primeiro, esse barco tem um tipo de quilha retrátil a que chamamos de patilhão-bolina. Quase um palavrão. Nos veleiros de pequeno porte, se utilizam bolinas, que são uma lâmina de metal ou de fibra de vidro que ajuda o barco a manter seu rumo. Neste caso, a estabilidade geralmente é resultado de a tripulação se pendurar na borda, fazendo escora. Já em um barco do tamanho do Bayesian, essa lâmina, que pode ser fixa ou retrátil, carrega um enorme peso em sua extremidade, como se fosse um torpedo, a fim de ganhar estabilidade, compensando a inclinação causada pelas velas quando em navegação.

Sabemos pelo rastro eletrônico do AIS do barco, que eles deram uma velejada naquele dia, pois a derrota ficou registrada em zigue-zagues. Após o passeio, vieram em linha reta para o fundeadouro escolhido. A mim, não faz sentido se manter o patilhão arriado enquanto se navega a motor, pois a resistência é enorme, assim como a perda de velocidade. Portanto, acredito que o capitão tenha simplesmente virado uma chave e a enorme bolina lastrada tenha sido recolhida em instantes.

O estaleiro está crucificando o capitão e a tripulação. No início foi noticiado até que ele teria apenas 22 anos de idade. Nada disso! O capitão tem 51 anos, nascido na terra de grandes velejadores, a Nova Zelândia, e trabalha em barcos desde a adolescência. Por que a tripulação se salvou quase toda e não se salvaram os passageiros? Normalmente, a área da tripulação fica bem perto da proa e com acesso rápido ao convés, além disso eles viviam no barco e conheciam todos os caminhos, e, por instinto, até com o barco muito inclinado tiveram essa possibilidade de salvação. Por que não entraram na cabine principal para salvar as pessoas? Ao que sabemos, o barco emborcou (virou de quilha para o céu) e afundou em poucos minutos. Desculpem-me, mas se a situação foi a descrita acima, não havia como entrar naquele barco.

A tempestade fez afundar o Bayesian? Também, sendo o gatilho que desencadeou a tragédia. Não se sabe se foi uma tromba d’água ou um microburst —no Brasil, costumamos chamar de micro-explosão atmosférica, fenômeno que costuma trazer um vento fortíssimo que desce na vertical, espalhando rajadas em todas as direções e com grande intensidade. Meteorologistas dizem que os ventos podem chegar a mais de 200 km/h. Tais ventos poderiam inclinar um casco gigantes destes? Sim, por certo. A área vélica do enorme mastro e seus cabos e acessórios ultrapassa os 100 metros quadrados, e pesa mais de 12 toneladas, segundo algumas fontes.

Minha tendência é dizer que a imprensa acertou no vilão, mas não na ação.

A impressão é que o imenso mastro foi o principal causador do acidente. Não por ter quebrado, mas, ironicamente, por não ter quebrado! Ventos fortíssimos atingiram o barco, fazendo-o deitar. Com as gaiutas e vigias abertas, deve ter acontecido uma enorme inundação e, por isso, o barco acabou emborcando e afundando. Se o mastro tivesse quebrado, talvez ele não tivesse deitado, e se ergueria com um enorme prejuízo, mas sem vítimas.

Caramba! O que aconteceu afinal de contas? Somente o inquérito poderá levantar todas as informações e chegar a uma conclusão. Como dito no nosso vídeo, um acidente destes resulta sempre de um somatório de acontecimentos imprevistos.

Por que dei o título Trágica Ironia para este texto? O nome Bayesian, traduzido pelo Google resulta em “baiesiano”, ou seguidor da Lei ou Teorema de Bayes, uma fórmula utilizada em estatística, que calcula as chances de um evento acontecer com base em dados e conhecimento prévio das variáveis. Também chamado de “cálculo que prova milagres”, triste ironia que desta vez o somatório das variáveis não tenha resultado em um milagre, mas em uma tragédia. Lamentável.

Alvaro Otranto